Marido de aluguel. Mulher, também?
Há muito, muito tempo, vinha, eu, desconfiando que, na condição de marido, homem serve apenas para algumas utilidades da primitiva fase do “homo faber”. Marido é, apenas, o homem que faz, que presta serviços, o “homo domesticus”. E, por serviços, entenda-se trocar lâmpadas ou a resistência do chuveiro elétrico, martelar pregos, consertar a descarga da bacia, dar um jeito na torneira, trocar pneu do automóvel, essas coisas que o Brucutu já executava nas cavernas.
A crise vem de longe. E tão aceleradamente desmoralizante que foi inevitável o aparecimento da nova e melancólica figura, no mundo pós tudo: pós-moderno, pós-razoável, pós-generoso, pós-humano. Eis que surgiu o marido de aluguel, novo e requisitado profissional na alucinação coletiva. Ele, o marido de aluguel, diz que apenas não presta serviços na cama, mas isso, tenham certeza, é por enquanto. É recompensado por serviço prestado como “homo domesticus”. É o que tem serventia.
Disso, faço, lá, minhas reflexões pessoais. A primeira: não sirvo, então, sequer para marido de aluguel. Pois sou o primeiro a admitir a minha absoluta incompetência para questões práticas. E me sinto feliz com a minha função de empurrar carrinho em supermercado. A inabilidade é tal que nunca me foi permitido sequer tentar enxugar pratos, pois o estrago é completo: de cada dois, quebro um. Fui impedido de ficar na cozinha. Desempenho a função que me foi atribuída: sentado num banquinho, fico proseando, abrindo a cervejinha, trocando os CDs de Nat King Cole pelos de Rod Stewart e vice-versa. Sinto-me, senão útil, razoavelmente aproveitável.
Mas a pergunta que não quer calar e cada vez mais insistente continua sem resposta: homem, afinal de contas, em que se transformou? A figura de marido, qual é? E se estão indefinidos homem e marido, não existe também pai. A mulher está conseguindo relegar o homem a papel absolutamente de ordem secundária. Homem tem sido dispensado até como procriador, pois as provetas aí estão férteis e disponíveis. Parceiro, companheiro, amante, amigo, o que era isso mesmo? Com marido de aluguel, quase tudo se resolve. E tudo se estraga ainda mais.
Na realidade, tanto brincamos — e aí está o colapso da brincadeira inventada por economistas nos Estados Unidos — que os modismos e pragmatismos roubaram a identidade de um e de outra, de homem e de mulher. Antes, éramos cônjuges. Ainda na velha Roma, para Cícero, “conjugium” era casamento, o jugo comum. Não o subjugo, mas o conjugo. Cônjuge é união; conjugar é unir; conjunção é ligar. Ora, se marido, o cônjuge se tornou tão inútil e dispensável, ocorre o mesmo com a mulher, a cônjuge. Quem é ela? Brincar de amor de vez em quando, não vale. E só não enxerga quem não quer: em já existindo marido de aluguel, reabrem-se as portas para o ressurgimento da mulher de aluguel, por que não?
Se a mulher ocupou quase todos os espaços, deixou outros inteiramente vazios, talvez os mais importantes. A mulher tornou-se motorista, enfermeira, profissional em sua atividade de trabalho, troca pneus, luta box, briga no trânsito, é mais homem do marido do que mulher dele. E como, nessa loucura toda, seria a nova versão da mulher de aluguel? Ora, não há nova versão de pessoas. Há novos contextos. Falar em marido de aluguel permite, em mão inversa, que insensatos voltem a dizer que “lugar de mulher é na cozinha”. E repetiremos tragédias antigas.
Se mulher ouvisse conversa de mesa de bar entre homens tristes, desanimados, cansados, perceberiam que me refiro à dramática fragilidade masculina pela carência de doçura, de feminilidade, de ternura. Da mulher que sorri quando seu homem chega, que o espera com delicadezas e cuidados, carinhosa e meiga. Que surpreendesse o marido com um cafezinho feito na hora. Ou com o doce que ele não saboreia há tantos anos. Que se abrigasse em seus abraços como quem quer proteção e oferecendo carinhos. A mulher que, quando ele desaba no sofá de exaustão, lhe faz um afago no rosto ou lhe acarinha os cabelos. Enfim, a mulher do homem da caverna que, solitário, retorna da floresta onde lutou contra tudo e contra todos, sem ter em quem confiar, sem sequer poder chorar. A companheira, a cônjuge, a conjunção.
Essa mulher sempre existiu, mesmo que, muitas vezes, de aluguel. O mais terrível de tudo é que, dentro de cada casa, essa mulher ainda existe. Só que parece escondida. Quando ela reaparece, o homem ressurge.