Matou o filho, torturou a mãe

Caim e Abel 2O admirável e assustador, no ser humano, é que, nele, coabitam e convivem, ao mesmo tempo, anjo e demônio, santo e assassino, o racional e o animal. Em meu entender, aquela reflexão do filósofo Terêncio sintetiza tudo: “nada do humano me é estranho.” E isso apenas significa que, na verdade, somos capazes de tudo. O mesmo gênio que compõe a sinfonia quase divina é, também, o brutamontes que agride, fere e ofende.

A vida, começo a pensar, seria mais suportável de ser vivida em comunidade se, em vez de nos escandalizarmos com a vocação assassina de algumas pessoas, passássemos a encará-las como algo normal ao homem, de sua natureza, quase que um destino que não acontece a todos apenas, talvez, por falta de oportunidade. A morte e o sangue nos acompanham. E os chamados livros santos ou sagrados – que prefiro chamar de livros da sabedoria, onde a história humana está escrita com todos os seus horrores – falam de deuses cruéis, sanguinários, vingativos. O próprio Deus cristão é um deus homicida, tanto no antigo como no novo testamento. Primeiro, exigiu que Abrahão matasse o próprio filho, interrompendo a ação assassina apenas quando, talvez, o seu instinto sádico ficou satisfeito. E Caim, que matou o irmão Abel? E, depois, quando Cristo – exausto e exangue na cruz – lhe pediu ajuda – “Pai, por que me abandonaste?” – deixou o próprio filho morrer, vítima do martírio a que o pai assistiu passivamente.

Por isso, o noticiário dos últimos tempos não deveria mais nos chocar: um pai que, por dinheiro de loteria, manda matar o próprio filho; um filho que tortura a mãe idosa; mães que jogam crianças recém-nascidas no lixo; outro pai que atira a filha da janela do apartamento. Somos herdeiros de um deus homicida e, por isso, a violência, o assassínio, a tortura não deveriam mais ser notícias primaciais dos veículos de comunicação, já que estas, sim, são o cotidiano e o natural do ser humano. A exceção – e por notícia se entende o que aparece como exceção no cotidiano das pessoas – está na bondade, na generosidade, na fraternidade, essa face nobre da mesma moeda, o ser humano também vocacionado para o belo e para o bom.

Lembro-me de, lá se vão mais de 40 anos, ter proposto a dois colegas meus, também donos de jornais, que abolíssemos as colunas e páginas de noticiário policial, das mortes estúpidas, dos crimes violentos e gratuitos, do sangue derramado, da visão demoníaca do lado escuro e sombrio da moeda humana. Propus que começássemos a divulgar e anunciar o bom e o bem, até mesmo como uma pedagogia do viver em comunhão. Ora, se anunciávamos as mortes de cada dia, na coluna de falecimentos, por que não anunciar os que nasciam, os bebês que vinham ao mundo nos hospitais, nas casas? A resposta de meus colegas foi de um pragmatismo que permanece atual: morte, violência vendem jornal; o povo gosta disso.

Até hoje, não me convenço de o povo preferir a morte à vida, o feio ao belo, o barulho ensurdecedor do que agora se diz ser música à maviosidade de uma composição melódica. O lado anjo do ser humano é esplêndido, mas o demoníaco existe e mostra estar vencendo. Mas parece ser esse o nosso destino, como foi o das civilizações pagãs que adoraram deuses cruéis. Ora, se o cristianismo venera um deus homicida, por que haveriam, os fiéis, de ser menos homicidas do que o próprio rei? Bom dia.

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