Mau final para um bom princípio

Vi-o à saída do supermercado, velho amigo, desde a adolescência. Demorei a reconhecê-lo: encurvado, abatido, cabelos revoltos, desleixado, olheiras indicativas de um estado depressivo. Acenei-lhe e, vendo-me, ele se aproximou, passos lentos, um leve mas triste sorriso nos lábios. Abraçamo-nos, o carinho de sempre. Às primeiras perguntas habituais – “como está, como vai a família, a saúde?” – ele deixou de sorrir, os olhos tornaram-se ainda mais sombrios. “Estou esperando Deus me chamar. E quero que me chame logo.” – respondeu.

Explicou-me que enviuvara há três anos, estava só, os filhos tinham-se casado, cada qual com sua família, suas profissões. “Sem a N…, não tenho mais nada. A vida não tem qualquer valor.” Tive, então, vontade de lhe tomar os ombros, sacudindo-o, talvez até mesmo umas palmadas amigáveis, para lhe dar algum sopro, algum sinal de vida. Percebi, porém, que seria inútil. Ele já estava morto, apenas perambulava. Foi, então, que uma sensação estranha me tomou, incomodando-me: seria, eu, tão egoísta assim que me sinto absolutamente incapaz de querer morrer pela ausência de pessoas queridas? Serei, eu, um insensível, que consigo viver e sobreviver – querendo cada vez mais viver e sobreviver – apesar das minhas também tantas perdas?

Parece-me, mais do que tolice, uma maldição esse vincular a alegria e o entusiasmo de viver a outras pessoas, por mais queridas sejam: pai, mãe, mulher, marido, filhos, amigos. O ser humano é, sim, animal gregário, mas o outro apenas o complementa, podendo ser fonte de mais alegrias ou de maiores tormentos. Ser feliz ou infeliz a partir de alguém é suicídio antecipado ou, parece-me, uma mediocrização total do dom da vida. Não há felicidade plena, absoluta. E sempre estranho quem diz ser feliz. Pois não acredito haja alguém inteiramente feliz, tais as nossas carências, desejos, quereres, afetividades. Podemos estar felizes, seja por momentos, seja por algum tempo mais longo. Ou esse estado de felicidade se renova, se atualiza, se restaura, ou terá sido algo inteiramente passageiro e infrutífero. Quem conhece momentos ou tempos de felicidade haverá, um dia, de perdê-los. Mas, por tê-los conhecido, haverá de pretender, ansiadamente, tentar vivê-los novamente.

Vi meu amigo tornado morto vivo pela ausência da companheira, mesmo sabendo, como sabíamos, não ter sido lá muito serena e amigável a convivência conjugal deles. Mas era o que ele tinha. Nem mais um outro desejo, nem mais um novo sonho, nem sequer um rasgo de esperança em algo que trouxesse expectativa e a ânsia de esperar pelo melhor. De uma certa maneira, lembrei-me de meu pai, que morreu de amor, poucos meses após a morte de minha mãe. Muitos acharam admirável a dimensão daquele amor, um homem morrendo de saudade da mulher amada que se fora. Eu nunca compreendi isso, por mais romanesco pareça. Vive-se por e para um outro, morrer por ele ou por causa dele é, penso eu, apequenar a dimensão infinita da vida. Sacrifícios divinos e religiosos são outra história.

Aquele meu amigo me mostrou, nas últimas horas de 2009, como não se deve viver e como é triste e até mesmo pecaminoso reduzir a vida à presença ou à ausência de pessoas. Por isso, o mau exemplo de final de ano deveria servir de uma formidável pretensão no princípio de 2010: viver com alegria interior, na consciência de que felicidade ou infelicidade acontecem por dentro e o único responsável por elas é o próprio ser humano. Afinal de contas, se estar feliz depende de alguém, ficar infeliz dependerá também. E felicidade é construção pessoal, absolutamente interior. Os outros podem contribuir para melhor ou para pior. Nunca, porém, como elementos essenciais. Bom dia.

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