Melhor idade e epitáfio

Sim, sim, é a melhor idade. Ou idade de ouro. Ou o escambal e o raio que os parta. Afinal de contas, sofismar não custa e eufemismo sempre doura a pílula. Para o que não tem remédio, remediado está, não é mesmo? E — como se diz em minha doce terra — já que tá que fique. Mais ainda: não se deve chorar pelo leite derramado. Mesmo porque “acabou-se o que era douce, quem comeu se arregalou-se”. Coisas assim, cuja síntese se resume a essa imagem poética, terna, consoladora: melhor idade.

Tenho, aliás, experiências formidáveis em relação à melhor idade, aos anos dourados dos velhinhos acima de 60 anos. Costumo encontrar-me com eles em situações excepcionais: em farmácias, em consultórios médicos, em clínicas. E em velórios. E é nestes, nos velórios, que a idade de ouro fica com aparência de latão, mostrando a sua verdadeira face: enrugada e abatida. E assustada diante do defunto amigo a que os sobreviventes foram velar.

Pode parecer questão fúnebre, a da croniqueta. E é mesmo. Porque, na tal melhor idade, o humor também se torna humor ácido, humor negro. Rir-se de quê? De colesteróis, triglicérides, diabetes, artrites? Quem se ri de próstata? Pois aí está, mais um dos segredos da vida, de existir, de estar, de sobreviver: rir-se. Rir-se de tudo, especialmente de si mesmo. Feito o palhaço do circo. O rir para não chorar. Ora, chorar, chora-se em silêncio, no recolhimento, como a Ana Carolina, que se recolhe na solidão da perda irreparável. Chorar, o choro bom, esse é o chorar e o choro da alegria. O da amargura e da dor, esse é o chorar das vísceras dilaceradas. Rir-se de si, segredinho da vida, é reconhecer-se pó de estrela, poeira. Pequenina e grandiosa. Entenda-o quem puder. E, se entender, será bem-aventurado.

Ora, os poucos amigos que me sobraram, deixei de convidá-los para os antigamente adoráveis bate-papos em nossos bucólicos botecos da minha Rua do Porto. Motivo simples e compreensível, espero: as conversas passaram a girar em torno das últimas receitas médicas, dos últimos lançamentos da indústria farmacêutica, euforia coletiva pelo fato de Viagra e assemelhados já estarem sendo manipulados e, portanto, barateados. Um amigo se vangloriou: “Agora, na farmácia de manipulação, peço quatro Viagras e pago o preço de um”. E outro amigo ficou ainda mais feliz: “Quatro? Dá para o ano todo!” E um velhote, tentando engolir uma talagada de água tônica: “Pra mim, quatro Viagra dá pra um ano e meio…” Desconversei.

Ora, dizem que vaso ruim não quebra. Quebra, sim. A vantagem é que demora mais a quebrar. Por isso, insisto em proclamar o meu acordo com Deus — para Ele não se esquecer — de viver mais uns 70 anos, quando verei a florada de minha palmeira indiana. Rego-lhe as raízes, da palmeira, todos os dias. Torço por ela. Pois, na verdade, ela me é o referencial da paixão de viver. Viverei. E, como La Passionária, direi à morte, e às dores, e às enfermidades, e às finitudes: “Non passarán.” Garanto que não me irão derrotar. Pelo menos, nos próximos 70 anos.

Digo-as, essas coisas, por indignação. E em desafio a um médico meu, jovem e brilhante, competente e responsável. Ele é, como pessoa e profissional, um ser humano admirável. Mas é crédulo demais na ciência, nas questões racionais, no jogo intelectual das possibilidades e das perspectivas. Esse meu querido médico não acredita no impossível. E, ao longo de toda a minha existência, nada mais fiz e por nada me movi senão por uma certeza apaixonante: o impossível é possível. Basta sonhar, acreditar e o sonho acontece.

Pois, então, todo cuidadoso e civilizado — num profissionalismo humanístico que me faz admirá-lo de maneira especial — o jovem médico, entre preâmbulos e delicadezas, me disse da necessidade de uma cirurgia. E de riscos e de possibilidades. Ora, e daí? O que é do homem a terra não come. O que tem que ser será. O que não mata engorda. E como ensinou o Paulo Vanzolini: levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.

Guardo com carinho o que dizia a mãe dos meus filhos, falecida, a respeito de mim e de minha vida. Ela elaborara o meu epitáfio, imaginando-me indo antes dela. Errou nos prazos e no tempos. Pois morreu antes de mim. Mas acertou no epitáfio, que, daqui a 70 anos, alguém irá colocar-me numa lápide: “Ele não passou vontade.” Não passei mesmo. Desejei o impossível e alcancei e tive o mais do que possível.

Superando a encrenca, provarei a meu jovem médico que o impossível é possível. Mas, se eu perder, Deus terá sido um tratante. E, então, que alguém escreva o que é, sim, uma síntese da jornada: não passando vontade, a melhor idade do homem é aquela que ainda não chegou.

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