Meu pai, 100 anos.

Tuffi, meu pai completa, neste 3 de março, 100 anos de nascimento. Uso, conscientemente, o verbo no presente. Pois ele está tão vivo em minhas lembranças, na memória de seus filhos que não morreu. Nem ele, nem minha mãe. Não sei, admito-o, como isso seja possível, mas a presença deles é tão concreta que a certeza, de repente, é de ouvir um som de violino, ou de ver a risada dela.

Falta de mãe é um vazio que se não preenche nunca. Orfandade de pai, no entanto, é um perplexidade, uma inconformação, como que uma impotência. Mulher deve entender o mundo mais do que o homem, pois ela cria o mundo, inventa-o. O homem, no entanto, apenas enfrenta o mundo, querendo construí-lo, reformá-lo, domá-lo. E sempre perde. Mulher é a vencedora, pois ela faz o mundo. Talvez, por isso, eu me sinta solitário, com a sensação de desnorteamento diante de valores atropelados, de princípios esquecidos e, então e por isso, eu me veja perguntando diariamente sobre o que, em meu lugar, faria meu pai.

Lá se vão 31 anos de sua morte. E, ainda hoje, os que o conheceram repetem como se fosse um mantra, uma oração: “Que homem bom!” E que busca incessante teve, ele, pela justiça! Quando, envelhecendo, digo que eu deveria andar de joelhos tantas graças recebi, tantos privilégios de amor conheci, coloco meu pai como a mais generosa bênção. Não consigo ter uma, uma única, uma só lembrança ruim dele. Nem um tapa, nem um grito, nem uma admoestação. O seu olhar bastava, pois, naqueles imensos olhos azuis, havia a voz de sua alma. E os olhos entristeciam quando ele se entristecia e se alegravam com as alegrias dele. Meu pai nunca conseguiu esconder sentimentos. E, ao vê-lo e ouvi-lo com seu violino – as mãos enormes segurando-o com carinho e cuidado – eu me emocionava, pois o seu corpanzil de atleta não era suficientemente grande para segurar-lhe a alma.

Vejo-me, pequenino ainda, no Clube de Regatas, às margens do rio. Meu pai me ensina a nadar, segurando-me pela barriga com uma só mão. Depois, vejo-o nas águas, esperando-me para saltar do trampolim. E eu salto. Sem medo, a certeza de que ele está lá, à minha espera. E que, portanto, nada de ruim me acontecerá. E vejo meu pai caminhando, à beira rio, com Nhô Lica, ajudando-o a catar pedras, pedindo-me silêncio, como se aquela fosse uma liturgia sagrada. Aprendi, também com meu pai e Nhô Lica, a catar pedras e a ver diamantes nelas. Até hoje, colho pedras preciosas. E salto sobre perigos, certo de que estarei protegido. Muitas vezes, caio, a queda dói. Mas recomeço. Vivo de acreditar. E de inventar. Herança de meu pai.

Aprendi a ler nos joelhos dele, leitor voraz de jornais, de revistas, de livros. E meus brinquedos, era ele que os fazia, na pobreza que vivíamos, com suas mãos de artista talhando e cortando e dando formas à madeira: um cavalinho de pau, um caminhãozinho, a espada para duelar com Guto Souza Campos, nos quintais do Hotel Lago. E aprendi a conhecer a dor ao participar da dor que, o lado de minha mãe, ele vivia após a morte de minha irmãzinha sob as rodas de um caminhão. Foi quando, combalido e derrotado, ele revelou toda sua humanidade: estava morto por dentro, alquebrado, incapaz de reação. Morreu por inteiro. E, algum tempo depois, ressuscitou, como se estivesse ainda mais forte. Mas com uma tristeza que nunca mais o abandonou.

Ele me olhava, profeticamente: “Árabe ou é comerciante ou é poeta…” Esticava os olhos para mim e, cochichando com minha mãe e amigos, adivinhava: “Ele nunca irá ficar rico.” Mas ele, também, era poeta, um comerciante que fez poesia do trabalho, da vida, da família, dos amigos. Quando ele morreu, caindo no túmulo de minha mãe, entendi o que era a orfandade plena. Que aumenta quanto mais a idade avança.

Meu pai completa, hoje, 100 anos. Está e continua vivo em minhas lembranças e se agita em minha carne. Que o leitor me releve, mas preciso agradecer pessoalmente e de público. E dizer-lhe que o amo ainda mais. Cada vez mais. Bom dia.

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