Meu rio, meu pobre rio

Foto: Davi Negri

Foto: Davi Negri

Não há, talvez, uma cidade na qual o humor do povo – alegrias e tristezas – dependa das águas de um rio. Porque, antes de cidade, Piracicaba foi um rio que, fascinando índios, os atraiu às suas margens. O homem branco também se deixou seduzir. E não deu nome nenhum ao povoado, pois ele já fora batizado pelo indígena maravilhado. Aquele paraíso, as águas eram “pirá”, peixe, “cycaba”, o lugar da colheita dos peixes. Outra tribo – no mesmo lugar e nas mesmas águas, borbulhantes pelas pedras do salto – iluminou-se de quase o mesmo: “pirá”, peixe, e ciricaba”, corredeira dos peixes. Assim, surgia Piracicaba, abençoada pelo signo do peixe.

Esse rio sagrado – o nosso Ganges –  tornou-se pia batismal de um povo. Que se tornou uma gente caipira,  como o próprio indígena se denominou: caá (mata), i (água), pirá (peixe). E seu batismo está lá, naquelas águas e no simbolismo profundo do peixe, uma bênção. Pois o peixe, na história da humanidade, simboliza o alimento e identificava, no início do cristianismo, o próprio Cristo. “Ichtus”, é nome do peixe em grego. E “ichtus” são as inicias gregas de “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”.

A pescaria é a busca do alimento nas águas. E simboliza a “pesca das almas humanas”. Piracicaba é a cidade privilegiada que, na colheita dos peixes espirituais, criou um estilo próprio e abençoado de viver: o caipiracicabanismo. Pescadores, nossa vocação é entregar o alimento material e espiritual aos que acolhemos e nos procuram. Não à toa, Santo Antônio é o padroeiro da cidade. E o seu mais célebre discurso foi a Pregação aos Peixes.

Acima e além, pois, de nossa história pessoal, há a gênese de um rio. E nossa alma piracicabana, nosso espírito, nosso amor, nossa singularidade são, todos eles, plasmados pelo rio, mesmo que não o percebamos. Eis uma verdade absolutamente verdadeira em toda sua crueldade: sem o rio, não existimos. Deixaremos de ser Piracicaba e, portanto, piracicabanos, para nos tornarmos, talvez, andarilhos em busca de um novo solo.

 “Nostra culpa, nostra maxima culpa”! Pois, há quase 60 anos, ouço, vejo, acompanho a luta de uma minoria em favor do rio sagrado, lutando por ele também. Lembro-me da poluição criminosa de indústrias, lançando restilo nas águas. A indiferença da então Usina Monte Alegre, mostrando, já então, que os interesses econômicos eram, para uns poucos, superiores à sacralidade da natureza e da vida humana. E, depois, a mentira criminosa, pérfida – iniciada com Carvalho Pinto e concluída por Abreu Sodré – na criação do Complexo Cantareira, que nos roubava águas formadoras. Os deputados Salgot Castillon e Domingos Aldrovandi reagiram, protestaram, mas acabaram confiando nas promessas do governo ou, simplesmente, deixaram-se iludir. Anunciava-se a morte do Rio Piracicaba. Lenta, vagarosa, cruel.

Ah! meu rio, meu pobre rio… No qual nadei ao longo de toda a infância, na mocidade, à beira do qual meu pai disse ter enterrado o meu umbigo. Ah! meu rio, meu pobre rio… À beira do qual, na Rua do Porto, aprendi com conversa de pescadores, ouvindo magias de lendas e de mistérios, vendo-os preparar tarrafas e barcos… Ah! meu rio, meu pobre rio… Por cujos sortilégios e seduções, jamais consegui deixar esta minha terra por ele banhada, por ele abençoada, ele, o rio, pia batismal de todos nós.

Ah! meu rio, meu pobre rio… Neste meu outono, prefiro morrer antes a vê-lo desaparecer deixando-me órfão do sagrado. Bom dia.

3 comentários

  1. Antonio Carlos Danelon em 06/02/2014 às 17:55

    Lindo, Cecílio. Maravilhoso!!! Deixe-me às suas lágimas juntar as minhas. Talvez não mereçamos mais a companhia desse glorioso amigo. Talvez ele tenha se cansado de tanto desprezo. Fiquemos com o dinheiro que o ‘progresso’ trouxe, pois foi isso que escolhemos por atos ou omissões.

  2. Marisa Bueloni em 07/02/2014 às 23:00

    Cecílio, eu já cantei o “nosso rio” em prosa e verso. E já chorei muito sobre ele também… Não aguento passar na avenida beira-rio… Mas, pera aí: onde estão os homens públicos desta terra? Cadê o orgulho de ter um rio lindo cortando a cidade? O que fazer para salvar o Piracicaba?

  3. Felipe Zotarelli Alcarde em 08/02/2014 às 15:22

    Demais, Cecílio! Sempre com excelentes palavras! Aqui, principalmente, verdadeiras e tristes!

Deixe uma resposta