Meu rio sem vergonha
A razão, já se sabe, desconhece razões do coração. Pois, na verdade, o coração não tem razão alguma. Ele palpita. E deixa-se levar pelo amor ou pelo desamor, pela alegria e pela tristeza. Sofre e exulta de satisfação. Tolo, na verdade, é quem busca razões para amar. No entanto, quando há motivos justificáveis, o amor torna-se indissolúvel. Amo Piracicaba com amor indissolúvel. Na alegria e na tristeza. Na saúde e na doença. Na riqueza e na pobreza. E nem a morte haverá de separar-me dela. Pois já elaborei tudo.
Pouco me importa se outras pessoas – ou se todas elas, do mundo – acreditarem seja loucura minha. Até admito possa-o ser. Mas santa loucura, loucura de amor. O fato é que meu pai – com suas doces mentirinhas ou delírios árabes – contou-me ter-me enterrado o umbigo à margem do rio, bem à frente do antigo Clube de Regatas. Acreditei e, até hoje – passados 74 anos daquele sepultamente glorioso – tento encontrar o pedacinho de chão onde minha carne repousou. Não o encontrei. Mas passei a fazer de conta estar, meu umbigo, em todo aquele espaço. E que, milagrosamente, deixei o útero carnal de minha mãe para pertencer ao útero instável, generoso, sagrado do rio.
Eis, pois, em que acredito ter-me tornado: um filho do Rio Piracicaba. Irmão, portanto, de peixes, de ondas, de águas, de corredeiras, de pedras, de limbo, de vapor, de espuma, de placidez que contempla céus azuis e noites pintalgadas de estrelas – e da fúria que despenca do Salto. Pertenço ao rio. E o rio me pertence. Seja ou não êxtase de um árabe contador de histórias, fiz, disso, minha verdade. E, quando se acredita no sonho, ele se torna real.
É tão entranhado esse sentimento que me confundo, ficando sem saber se o rio nasceu antes de mim; se eu, antes dele. Prefiro iludir-me tenhamos nascido juntos. Pois, assim, alimento a esperança de morrermos juntos também Sei ser um sonho, mas – aqui e agora, ou em outra dimensão – não entendo a vida sem o rio, meu velho, meu amado Rio Piracicaba, esse rio sem vergonha.
Pescadores e meu pai contrariavam Platão, que disse “não ser possível entrar duas vezes no mesmo rio.” Para eles e para mim, era o mesmo rio, sempre, mesmo sabendo que suas águas iam para o mar. “Mas elas retornam como chuva”, diziam-me eles. E me estimulavam a fazer xixi no rio, garantindo-me ser esse o sal dos oceanos. E eu sentia-me pequenino deus, fazendo xixi nas águas do rio. E aguardando a chuva retornar para sentir se eram, também, salgadas as suas gotas.
O rio foi meu leito generoso quando – do alto da ponte e enrolados em bóia de pneu de caminhão – saltávamos para que as corredeiras do Salto nos empurrassem para a aventura maior. O bramir, o fremir, o urrar da corredeira era uma sinfonia de Wagner em meus ouvidos. E, depois, vencido o grande obstáculo, sentir-me pacificado deslizando em águas plácidas, acolhedoras, sussurrantes como acordes de Bach.
Pescadores – tendo o rio como imagem e símbolo – ensinaram-me lições de vida, uma ética de viver. Honradez: “Veja as águas do rio como carregam barro em enchentes muito rápidas. Assim é na vida: quem muito dinheiro rapidamente ganha carrega barro junto. É preciso trabalhar.” Persistência: “A vida é como um rio. Você está numa margem e sonha em descobrir o que existe na outra. Então, entra nas águas, dá braçadas, luta e, se for vitorioso, chega à outra margem.”
Nadar em direção à outra margem tinha, porém, um ritual. Era preciso persignar-se, fazer o “em nome do Pai”, balbuciar uma oração. Muito, muito tempo depois, descobri que os gregos – para atravessar rios – faziam ritos de purificação e prece. Meu Rio de Piracicaba era, pois, uma entidade espiritual, bacia de águas bentas, fonte de abluções e de penitências.
Começou a chover. E o rio renasce. Amo-o ainda mais. E com certo cinismo ao me lembrar do que o inesquecível Felisberto Pinto Monteiro dizia dele: “Não se preocupem com a seca. Qualquer chuvinha e ele enche de novo. É um rio sem vergonha.” Deliciosamente sem vergonha, graças a Deus. E bom dia.
…” não apresse o rio..” frase que uso quando ansiosa. Durante o “descanso forçado” que ele fez, ficamos empedrados e tristes. A Noiva ficou sem véu.
É gratificante quando alguém expõe uma visão que harmoniza o Homem a tudo que o rodeia; que vê a nossa espécie como parte integrante da Natureza e não fora dela. É bom saber que há pessoas, para as quais o amor não se restringe à nossa própria espécie, mas que se estende à Criação como um todo. Parabenizo o autor ao qual peço que permita fazer apenas uma pequena correção, provavelmente decorrente de um lapsus memoriae, comum aos que, como eu, “já percorreram mais que a metade do caminho”: a frase no texto atribuída a Platão, seria realmente da autoria de Heráclito. Platão só iria nascer quase meio século (428 a.C.) após a morte de Heráclito (475 a.C.).
Um forte abraço ao autor e a todos os leitores e produtores de “A Província”
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