Meus pobres livros de papel

Olho para eles e me angustio. Esforço-me por perder o olhar embevecido com que os via, como se fossem filhos queridos, amigos muito amados. Pensei fossem eternos, que sobreviveriam a tragédias, catástrofes e até a mim mesmo. Minha ansiedade era pensar para quem deixá-los depois de lá ter-me ido eu. Quem haveria de querê-los, tantos e tantos, ocupando grandes espaços. Então, eu passava os dedos nas lombadas de cada um, acariciando-os acho que até com mais carinho do que acarinhar a mulher amada.

Aprendi a ler antes de ir à escola. Sentado no joelho dos meu pai, ele lia o “Estadão” para mim, fazendo-me acompanhar letra por letra, palavra por palavra. Aprendi, comecei a ler gibis, a revista Grande Hotel (que minhas irmãs assinavam), O Cruzeiro, Seleções do Reader´s Digest. Quanto entrei na escola, estava alfabetizado. E as aulas me pareciam enfadonhas. O vírus da curiosidade, da vontade de saber, de conhecer já me atingira. E me contaminou pelo resto da vida.

Quando completei 10 anos de idade, dona Filomena Grisolia – mãe de meu coleguinha Sérgio Brás – me tornou a criança mais feliz do mundo. Ela me presenteou com o livro “Helena”, de Machado de Assis. Foi como se eu tivesse recebido um tesouro.E tomei a decisão: colecionar livros, ter minha biblioteca. Começou com “Helena” e não parou mais. Ainda não.

Fui tornando-me um rato de bibliotecas, de livrarias, de sebos. O saudoso Leandro Guerrini – austero diretor da Biblioteca Municipal – passou a me auxiliar e se tornou meu cúmplice. Todos os livros que os padres do Dom Bosco nos proibiam de ler, o professor Leandro – me chamando á sua sala – mos ia dando, um por um, às escondidas. Lembro-me do “Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz, estigmatizado pelos padres. Leandro Guerrini o separou para mim, escondendo-o dentro de minha camisa para que ninguém visse o garoto saindo com o livro proibido.

O dinheirinho que me sobrava, eu o gastava em livros. Endividei-me para comprá-los. Os Irmãos Brasil – da Livraria Brasil – abriram-me uma conta especial, de crédito,para eu comprar livros e pagando quando pudesse. Só depois eu soube que meu pai os autorizara e ele mesmo, papai, ia lá pagar parte de minha conta. Nunca me importei em comprar brinquedos, carros, tentações de consumo. Eu queria livros e, a cada dia que passava, a minha lista de autores ia aumentando. Comecei a vier um sonho impossível, delirante. Queria ter e ler todos os livros do mundo. E meus olhos iam-se queimando de tanto ler: de dia, de noite, de madrugada, à luz de lâmpadas fracas e, também, de velas.

O meu querido Gustavo Alvim sempre se espantou em relação ao tempo que eu despendia lendo. “Como é possível?” – perguntava. E minha resposta será até ingênua, singela: dormir pouco, não ver televisão, a não ser jogos do Corinthians. Dirigir jornal, lecionar, presidir Cursilhos, participar de política, cuidar da família com cinco filhos – e ler, ler, ler. E escrever, escrever, escrever. Foi assim. Tem sido assim há mais de 60 anos.

É óbvio que não li todos os livros de minha boa biblioteca. Mas garanto que cada um deles passou por minhas mãos e eu os folheei, li alguns trechos. Era tanta a intimidade que eu sabia, de cabeça, em que estante e em que prateleira estava cada um deles, na minha imensa bagunça organizada: “Está na quinta estante, ao lado esquerdo da terceira prateleira, tem a capa amarela. “ Depois que inventaram de organizar minha biblioteca, já não encontro mais nada. Vou pelo faro e é, então, como se o livro que procuro exalasse o perfume mais forte para eu localizá-lo.

Agora, agonio-me. Tenho medo de ir à biblioteca, de olhar meus pobres e amados livros de papel. Há raridades, que comprei com o suor do rosto, passando apertos financeiros. E há raridades que ganhei como herança de famílias amigas. De Piracicaba, guardo tesouros. E todos de papel. Então, o medo e a angústia me dominam. Eles, os meus livros, estão condenados, jazem no corredor da morte. Poucos anos lhes restam. Pois o livro eletrônico chegou. E chegou para ficar. Toda a minha bela e vasta biblioteca irá caber num simples aparelhinho de se carregar no bolso.

Não sei se conseguirei viver sem eles. Mas, pelo que percebo, eles, meus livros queridos, estão à minha espera, aguardando para se irem embora comigo. Será uma fogueira memorável. Bom dia.

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