Mistério de madrugadas

picture (80)Madrugada é momento de passagem de um para outro dia. Cada qual reza a sua própria missa. A minha, eu a rezo em madrugadas silenciosas. São horas em que, dentro de mim, tudo acontece, delírios e êxtases, martírios e libertações. Houve tempo em que desejei entender o porquê disso. Agora, não me interessa mais. Sei que acontece e isso me basta.

É minha missa, meu encontro com um outro lado ou dimensão, conversas com Deus e deuses, com demônios, horas de ofertório e de consagração, também de exorcismos, certamente de penitências. E o deserto. Só pode entender quem o conhece. A luz que cega, o calor que mata e, depois, a escuridão plena e imensidões estreladas, e o frio que enregela e também mata. Penso ser um estado febril, nada além disso. E febre causa delírios e visões, libertação dolorosa onde o corpo parece não existir, pois é a alma que flui e que vaga. O corpo se transforma apenas em coração, algo que bate e pulsa, que pulsa e bate, mas que não se vê. Não sei explicar: não se sente o corpo, ouve-se o pulsar dele. A alma soa como a de um moribundo ou paira como a de um bêbado, sei lá eu. Inventei, para explicar-me, que tenho um raio de luar e um pangaré, metáforas para dizer do que não consigo entender. No fundo, tenho sido medroso e há algo como covardia.

Já escrevi sobre esse medo e essa covardia, poucos entenderam. Trata-se do outro lado, da porta que se pode abrir, a cortina que se pode descerrar. Encostei nessa porta, toquei na cortina, mas recuei. Não fôra meu corpo que tocara na porta ou na cortina, mas a alma, incontrolada e dona de si mesma. Ela ia, ia, estava indo e, então, tiv¬e medo. Era o outro lado, aquilo além da porta ou da cortina. Mas era a alma que ia, o corpo ficava. Então, o medo: e se a alma, depois da porta e da cortina, não retornasse? Toquei, posso dizê-lo e não me importa como me interpretem, pois, se me importasse, não teria voltado a escrever sobre isso: toquei no mistério. Mas recuei.

Em madrugada recente, quase fi-lo novamente. Parece um imã atraindo. E ele se anuncia à tarde, antes do anoitecer. Vai tirando as forças, dando tonturas, roubando a capacidade de pensar, uma luta de ir e ficar que cobre o corpo de suores que correm como se desidratassem. Aprendi a enfrentar o imã, certamente por medo dele. Então, tento cansar-me, sentir os músculos, manter a sensação e a certeza de vida: nadar, correr, apertar a carne. E, depois, dormir, fuga dessa passagem dolorosa, do sol para a lua, do dia para a noite.

Mas é inútil, pois, quando o imã aparece, a madrugada será de lutas e de delírios. E, então, o recomeço de tudo: a alma, livre e solta, m direção à última porta, a cortina tão transparente que permite enxergar o outro lado, basta querer. A alma quer, mas a razão recusa. Aconteceu novamente. Mas o momento passou, ” ite missa est” . Algum dia virá a coragem de ir. Bom dia.

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