Monstrinhos sem pescoço

Monstrinho sem pescoçoOra, instintos homicidas, todos nós os temos. São parte de herança ancestral, arquetípica. Os deuses de muitas civilizações — inclusive o cristão — são homicidas. Quando os amamos e adoramos, não apenas os respeitamos e tememos, como, também, os invejamos. Pois há tanta crueldade nos deuses que estremecemos ao pensar no sangue que eles derramam, nos homicídios que causam, por mais santos e sagrados nos pareçam.

Não sei, não, mas acho que grande parte de meus conflitos intelectuais em relação à epopéia judaico-cristã eu a devo ao horror que, ainda criancinha, senti por Abrão, justamente o “pai da fé”. Como podia, ele, aceitar sacrificar o próprio filho, imolando-o? Ora, apenas por ter ouvido vozes, foi, ele, ter certeza de ser “a vontade de Javé”? Essa história me horrorizou tanto quanto me assustei à primeira vez que me contaram do lamento de Jesus, implorando que o pai, na cruz, não o abandonasse. Ora, não entendo que deuses exijam pai mate filho ou que permitam filho morra de forma tão horrível e sacrificada. Não entendo e não quero que me expliquem. De filho meu, cuido eu.

Mas que temos instintos homicidas, lá isso temos. Hoje, não sei como são as coisas entre quatro paredes, mas sou do tempo em que era comum a mulher chamar o marido e, querendo esganar o filho rebelde, falar: “Ou você dá um jeito ou eu mato esse moleque.” E pai, ainda mais ferozmente: “Se você não calar a boca, seu idiota, eu mato você, sua mãe, sua avó, o raio da família inteira.” Fala-se apenas de boca, mas fala-se. É o instinto homicida, humano como o instinto de solidariedade. Mata-se o outro, morre-se pelo outro.

Ora, eu tive instintos homicidas, todos eles, certa vez, numa palestra para adolescentes em cidade vizinha à minha. Quando a gana assassina começou a aflorar, lembrei-me — ao ver a multidão de adolescentes com olhares bovinos, como dizia Nelson Rodrigues — da Elizabeth Taylor. Pois é. Diante da turba de jovens candidatos a delinqüentes, lembrei-me da beleza estonteante de Liz Taylor, dos olhos cor de violeta, daquele rosto perfeito como nunca se viu outro, a não ser o da Ingrid Bergman. Parêntese: sei que ando nostálgico de belezas antigas, mas a culpa é da Daniella Cicarelli, com essa vulgaridade alarmante, perigosa para a saúde pública. Fecho parêntese.

Então, diante da multidão, vi Elizabeth Taylor, lembrei-me dela, o olhar furioso que desferiu, o ódio que destilou no filme Gata em Teto de Zinco Quente. Histérica, sem filhos, vendo os sobrinhos endiabrados, gritou: “Monstrinhos sem pescoço”. Não sei se a expressão estava no texto do Tennessee Williams, mas foi o que ela falou. E foi o que vi à minha frente, no salão imenso, cerca de 500 adolescentes preparadíssimos para não ouvir, para me infernizar. Se queriam apenas mugir, por que não tinham ficado nas próprias casas? E eu, idiota, por que estava lá?Olhei para as professoras — um bando delas, duas diretoras — e vi que estavam com rictus e vincos amargos nos rostos, peles secas, olheiras, sombras sei lá se de infelicidade plena ou de desalento total nos olhos. O olhar de cada uma, percebi, expelia ódio, desprezo, enjôo, indignação, cólera, ira, e elas não faziam questão de disfarçar seus instintos homicidas que me pareceram claros e óbvios. Elas, se pudessem, tive certeza, esganariam a turba. E eu também.

Desisti de fazer a palestra. Mas seria indigno, de minha parte, ir-me embora sem vingar-me. Pois vingança é sentimento muito mais nobre do que pensam os santos moralistas. Vingança é terapêutica, lava a alma, purifica o coração, higieniza o espírito. E quando se vinga com sutileza, calmamente, ela se torna doce. Pensei em Elizabeth Taylor novamente. Insisti, insisti, consegui alguns segundos de silêncio, fazendo chantagem, elogiando a garotada: “Vocês são felizes, crianças privilegiadas. Até para morrer serão mais felizes do que as outras, tão felizes quando o ex-presidente e marechal Castelo Branco, lembram-se do Castelo Branco?”

O silêncio foi sepulcral. As crianças se olhavam, excitadas pela comparação. Continuei: “Como Castelo Branco, vocês nunca poderão ser mortos por enforcamento.” E a gritaria, a plebe ululante: “Por quê, por quê?” Vinguei-me: “Porque, seus merdinhas, como Castelo Branco, vocês são monstrinhos sem pescoço.” E fui-me embora, sob aplausos frenético das duas diretoras e da tropa das infelizes professoras.

Foi meu dia de herói.

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