Morada da alma

pictureDe quando em quando, abro portão, espio o mundo lá fora. Ou ele me bate à porta. Atendo-o e me recolho ao meu. Ou apenas vejo. Das coisas, há algumas de que gosto, outras de que não. Seleciono, então, o que me agrada, trago para dentro, volto a recolher-me. Ora, Fernando Pessoa contou, ao mar salgado, não saber quanto, daquele sal, eram lágrimas de Portugal. Mas que valera a pena: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Esperta, a alma humana.

Desconfio: a alma sabe o tempo certo de se manifestar. Deve ser diferente em cada pessoa. Em mim, ela se mostra quando a razão não mais me dá respostas, quando se me fogem até as pequeninas explicações. Nessas horas –se parecia escondida, de tão quieta – a alma aparece. E age na carne. Se for coisa boa, ela faz sapecagem como a fada “Sininho”. Com coisa ruim, machuca. Ou, então, recolhe-se como a sombra roubada a Peter Pan.

A alma – pelo menos em mim – parece assumir mil formas, tamanhos, larguras. Tem momentos em que só ela existe, tão imensa, tão leve que carrega o corpo a voar junto. Em outros, fica pequenina que nem se dá a perceber. Então, ou some ou pesa. E o peso é tanto que o corpo afunda, naufraga. Sem alma, fica-se sonâmbulo pela vida. E, com alma pesada, carrega-se o mundo nas costas. Prefiro quando a alma me avisa “Sininho” ter chegado.

Penso – digo-o em mim, não sei dos outros – a alma escolha o seu próprio lugar dentro da gente. De vez em quando, mora em todo o corpo, no corpo inteiro – tal a leveza plena, tal o peso total. Quase sempre, porém, mora em pedacinhos. Sabe, a dor terrível, a que dilacera o coração, o punhal que o sangra, a dor que não passa – a saudade? Pois, na saudade, a alma mora no coração de quem a tem. É onde ela fica. E custa a sair. Quanto maior a saudade, mais a alma tem, no coração, lugar para morar.

E na paixão? A alma mora no estômago, bem na boca dele. Quando surge aquele não-sei-quê gelando a barriga, tirando a respiração, doendo como uma náusea – é o lugar onde a alma decide morar. Ou, então, na dobra dos joelhos, quando – vendo a pessoa amada – as pernas bambeiam, tem-se tremedeira, parece ir-se cair. Joelhos de apaixonados tremem por a alma estar morando lá.

Tem horas em que, a alma, nem a percebo, não sei onde se escondeu. Se dorme, se ressona, se tem preguiça. Já percebi, porém, isso acontecer quando a razão insiste mandar em mim, comandar-me a vida, decidir meus atos, impor sua ditadura. Acho interessante: a razão não suporta a alma. Se ao menos gostasse, deixaria a minha falar e agir quando e como bem entendesse. A alma, por sua vez, gosta da razão. E tanto gosta que, vira e mexe, tenta ajudá-la a escapar às suas preocupações. É complicado: a alma ouve a razão, a razão quase sempre ensurdece-se à alma.

Chegarei, um dia, a alguma conclusão. Na verdade, a uma decisão. Pois, se já sei da convivência de alma e razão, tenho que saber conciliá-las. Desconfio ser simples a solução: dar mais ouvidos à alma, menos importância à razão. Outro dia, por exemplo, descobri – em momentos quase seguidos – lugares onde a alma morou pelo menos por alguns instantes. Da primeira vez, no dedinho do pé, após o trupicão, a dor foi forte, dor de gemer. Não tive dúvidas: minha alma estava ali, na dor do mindinho. E, depois, quase em seguida, ela me apareceu nos olhos. E escorreu-me pelo rosto, devagarinho, de mansinho, pensei fosse “Sininho” com brincadeiras dentro de mim. Eu via Gene Kelly, “dançando na chuva”. A alma ficou-me nos olhos. Não era pequena, valeu a pena. Bom dia.

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