Morte da solidão

Há alguns anos, uma informação, na tevê do Sesc, pareceu-me quase despretensiosa, como se apenas um registro por assim dizer epidérmico: um número de telefone aos interessados, o nome da obra. Referia-se a álbuns de música popular brasileira, seus autores e intérpretes, acompanhados de livros com dados biográficos, entrevistas. A informação soava como algo quase banal. E era a revelação de um tesouro.

A mesma informação, vi-a outras vezes. Intriguei-me. O telefone para contato era, também, quase informal. Tratava-se de álbuns com o título: “A Música Brasileira Deste Século”. Ora, é sabido que o Sesc, quando se envolve também em cultura e arte, revela não apenas a sua reconhecida e pública seriedade, mas requinte e refinamento. O que seriam aqueles álbuns com cds, livros? Quem eram os autores e intérpretes? Como era a obra? O tesouro era ainda maior do que eu supusera.

Pois é. Ainda hoje, ouço dizer que a solidão se vai tornando a grande companheira de homens e mulheres quando se vêem diante da “idade de ouro”. Solidão – quando escolha pessoal e opção de vida – tem o sentido de recolhimento. Venho tentando viver esse distanciamento das coisas, não sei se para melhor vê-las se para apenas refletir, pensar, reavaliar e – então e se possível – contemplar. O ser humano há que ser seletivo, para não sucumbir a ondas, maremotos, multidões, modismos e ruídos. Não é possível viver com tudo e com todos. Por isso, escolhe-se. Logo, a vida é seleta. Bach e axé não caminham juntos.

Para ser seleta, a vida é seletiva. Há caminhos, setas e encruzilhadas; filosofias, credos e ideologias; amizades, grupos e sociedades; deuses, anjos e demônios. O ser humano é parte de tudo isso. Faz parte. E, por isso, também potencialmente capaz de tudo: de ser anjo e demônio, feliz e infeliz, amorável e detestável. Se conseguir escolher – ou se tiver sorte – poderá fazer, de sua solidão, um paraíso de delícias ou o inferno na terra e na alma. Os outros poderão, então, ser aquele nosso inferno sartreano, ou os que nos completam. O seleto da vida é aquilo que o homem seleciona. Coexistir é necessidade. Mas conviver é escolha.

Desde aquela época, tive certeza de que aqueles álbuns do Sesc e da Fundação Padre Anchieta, decretavam a morte da solidão em almas perplexas. Digo das de homens e mulheres que colheram, na vida, uma gota que seja de beleza e de maravilhamento. De minha parte, desde quando me tornei íntimo, lendo e ouvido, aqueles discos e livros passei a viver em susto permanente. Pois tudo ainda está vivo, admiravelmente vivo em entrevistas, depoimentos, testemunhos, de autores e intérpretes que falam de seu tempo, de sua vida, de sua música. Contam e cantam; narram e revelam.

Ainda agora, quando tomei daqueles livros e discos, volto a garantir: mortos ressuscitam, aleijados andam; cegos vêem e surdos ouvem. Quem nunca amou irá querer amar. Quem desamou voltará a amar. Quem ainda ama cuidará mais de seu amor. Pois estão vivos Dick Farney e Lúcio Alves e Ademilde Fonseca, sim, senhor. E Baden e Billy Blanco e João do Valle. E quê pensar de Nora Ney, com a voz rouca, falando da vida em nossa casa, contando de Antônio Maria, “ninguém me ama, ninguém me quer?” E Claudete Soares? E Tito Madi, na noite que está “tão fria, chove lá fora”? E tem Aracy, Chico, Carmélia Alves, Dorival e Nana Caimmy. E Nara Leão e Beth Carvalho e Gonzaguinha. E Orlando Silva e Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves. E Isaurinha. Tem dona Yvone Lara e Taiguara, Ciro e Adoniran.

É uma obra trazendo uma só mensagem: “Chega de saudade. Eis aqui tudo o que aconteceu.” O belo e o especial. E o seleto. Volto a reafirmar o que fiz já quando aquela obra se tornou pública: ninguém mais tem o direito de dizer-se solitário. A alma das coisas permanece viva. Fantasmas estão em nós. Bom dia.

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