Morte morrida do Carnaval

CarnavalEm meados dos 1960 e ao longo de quase toda a década dos 1970, Piracicaba viveu um tempo de transformações e alegrias coletivas que se tornaram conhecidas em todo o Brasil. E, aqui, uma cidade média do interior, acabou acontecendo o que se tornou conhecido como “o melhor Carnaval do interior de São Paulo”. Começou com a iniciativa de pequenos grupos que se foram juntando aos cordões carnavalescos que espalhavam alegria a partir de negros. Quase todo o chamado “carnaval de rua” de Piracicaba era da iniciativa e como que prioridade de negros. E figuras quase míticas se tornaram conhecidas e amadas, pontificando, entre muitos outros, Neguito, Zego, Vassourinha, Neidona.

Foi quando a gente branca foi para as ruas na comunhão carnavalesca com a talentosa gente negra. Começou no Rio de Janeiro, onde e quando, em 1972, a milionária Beki Kablin, que fora casada com o poderoso Horácio Klabin, deixou a redoma de cristal da chamada alta sociedade carioca para desfilar em escolas de sambas na avenida. Beki Klabin, de origem turca, foi a mulher que mais revolucionou os costumes do país em seu tempo, muito mais do que a mítica Leila Diniz, que esta era ligada a intelectuais e artistas. Beki deixara os salões e as gaiolas de ouro para escandalizar o país tornando-se jurada do programa de Chacrinha, namorando Waldocky Soriano, tido como o mais vulgar de nossos cantores, sambando na avenida.

Em Piracicaba, foi a Zoon Zoon a primeira das então chamadas escuderias a levar, às ruas, a nata da sociedade piracicabana. O exemplo da bela Célia Corrêa dos Santos, filha do fotografo Cícero, sambando nos cordões, o suor de brancos e negros correndo na mesma alegria, contagiou a elite piracicabana. E foi um modismo extraordinário ver as mais refinadas e sofisticadas mulheres piracicabanas dançando nas escolas de samba, respeitáveis e circunspectos cidadãos abrindo alas nas comissões de frente.

A explosão de alegria e de vivência democrática do Carnaval fez com que a nossa festa ultrapassasse os limites da cidade, chegando aos grandes jornais, às emissoras de televisão, às revistas. Assim, de ano em ano, personalidades do mundo artístico vinham a Piracicaba participar do Carnaval, hospedando-se nas mansões da cidade e juntando-se, nas ruas, ao povo e aos bailarinos negros que, a pouco e pouco, deixaram seus cordões para se unirem às escuderias, formando novas escolas de samba.

Foi um tempo em que Carnaval teve grande importância também turística para Piracicaba, com o comércio vivendo dias de euforia e de desenvolvimento. A Prefeitura, através dos departamentos de cultura e de turismo, estimulava e organizava o Carnaval, em comum acordo com as escolas de samba. E tivemos, então, uma década áurea onde e quando povo e elite se congraçavam nas ruas. Para se ter uma vaga idéia do que foi, era comum freqüentadores dos clubes Coronel Barbosa e de Campo, então os mais sofisticados da época, terminarem as noites carnavalescas no Baile do Bidito.

Se me perguntarem quando se detectou a primeira enfermidade do carnaval de rua, turístico e empolgante, não hesito em dizer que foi na administração do atual deputado Thame. Pois, com ele, desceu, sobre Piracicaba, como que uma nuvem de tristeza, de materialismo, de mediocridade. Os esportes sofreram rudes golpes, o Carnaval, outro. A mentalidade era negativista e sombria. A partir de lá e, também, com o cansaço, morte, envelhecimento de muitos carnavalescos, a morte estava anunciada.

Ora, em nossos tempos de cultura de massa, Carnaval nada mais é do que um dos grandes componentes da sociedade dos espetáculos. Por isso, há apenas duas possibilidades de sua sobrevivência: ou o humilde, simples e anônimo carnaval do povo, nas ruas, nos cordões, nos blocos; o grande espetáculo como indústria cultural e de entretenimento. Piracicaba insiste em ver a realidade ou com olhos míopes ou com olhos cúpidos. Governos municipais olham para o que dá lucro, mal importando como, além de falso prestígio que trará possíveis mas superficiais êxitos eleitorais. O povo fica à margem dessa cupidez. E, da mesma forma, o povo é vítima da miopia que, como este ano, promove um carnaval ridículo, pobre, caricato, como que para dizer que algo sobrou daquele tempo de mentalidades abertas e de larga visão.

O descaso, os silêncios, o dar de ombros, o alheamento de lideranças e da própria população por seus segmentos mais influentes mataram o carnaval. Olhos míopes enxergaram pouco. E os olhos cúpidos não tiveram o tirocínio para entender que o Carnaval piracicabano poderia voltar a ser um centro de atenções e, para falar a linguagem que lhes interessa, de lucros. O fato é que o Carnaval, aqui, morreu de morte morrida. De velho e cansado. Bom dia.

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