Mudando o mundo

picture (93)A bênção maior, certamente, em minha vida são-me as conversões. Elas não se esgotam. Converto-me sempre, um ir e vir, um estar e sair, um nunca ficar que, enfim, me confortam. Ainda nesta madrugada em que escrevo, voltei a converter-me. E volto a ser derrubado de meu cavalo, Saulo abobalhado. E olho para a foto de Luiz Carlos Prestes – um “Cavaleiro da Esperança” ainda jovem, rosto limpo, olhar límpido – e me comovo. Ao alcance de meu olhar, no meu canto de escrever, vejo-o na moldura puída.

Foi após as aulas na Faculdade de Direto, em Campinas. No ônibus trôpego, em direção a Piracicaba, o vendedor de livros sentou-se-me ao lado. E eu lia algo de Sartre. O homem se interessou. Conversamos. Descobrimos ter, em Piracicaba, amigos comuns. Um deles, um intelectual marxista, João Chiarini, como que meu tutor intelectual. Enfim: ele me convidou a, com Chiarini, ir a uma palestra num barracão de Americana, naquela mesma noite, uma questão sigilosa. Fui. E conheci Luiz Carlos Prestes. Acho que fui batizado por ele.

Dois momentos, após aquela conversão apaixonada ao “Cavaleiro da Esperança”, nunca mais se me apagaram das lembranças, das dores, das inquietações e das angústias. O primeiro deles foi quando, iluminado pela paixão comunista, falei à minha namoradinha o que me abrasava corpo, alma, coração: “Vou ser revolucionário e consertar o mundo.” E lhe expliquei que, amando-a tanto e tanto, não poderia viver sem ela. Mas que não tinha futuro a lhe oferecer, a não ser a luta pelo sonho. Minha amada aceitou. E se tornou mãe de meus filhos.

Algumas noites depois, madrugada alta, cheguei à casa de meus pais, bêbado, alucinado, o violão a tiracolo. Fidel Castro, Che e Cienfuegos já estavam em Havana. E, com amigos, eu bebera um tonel de Cuba Libre, rum e Coca Cola, a mais paradoxal das misturas, paradoxal mas embriagante. Havia luz no quarto de meus pais, minha mãe estava acordada, à minha espera. Bêbado e iluminado eu lhe contei e lhe prometi: “Mãe, eu vou consertar o mundo.”

No entanto, nunca me perguntei a respeito de consertos. Consertar o quê? E, em cada tentativa, fui sendo derrotado. Em 1964, tomei a decisão: “Vou consertar o Brasil.” Em 1968 – eis aí o ano que se acabou, sim – eu me convertera ao Catolicismo e, deslumbrado, decidi: “Vou consertar São Paulo.” No Governo Médici, tomei outra decisão: “Vou consertar Piracicaba, minha cidade.” Nos 1980, perdendo a fé, empolguei-me com outra decisão: “Vou consertar meu bairro.” E, daí, tentei consertar o quarteirão de minha, a rua onde eu morava e resolvi consertar minha família. Um dia, já no final dos 1990, tive uma iluminação: “Vou consertar-me a mim mesmo.”

E não consertei nada. Eis o milagre, o segredo, minha nova conversão. Eu não precisava e nem preciso consertar nada, pois nada há para e a consertar. O que existe são a mudança, a transformação, o movimento, a rejeição à inércia. A cada decisão minha, a cada ato, a cada gesto, eu fui e sou o homem que mudou o mundo. E que muda. Para melhorar ou para piorar. Para cuidar de paraísos ou criar infernos.

É o que, nesta já madrugada, estou querendo dizer, olhando para a foto de Luiz Carlos Prestes. Converti-me ainda outra vez. Não tenho e não preciso consertar nada, nem fazer guerra alguma. Eu mudo o mundo todo o dia, a todo instante. Com um sorriso, com um afago, com uma palavra ríspida, com uma grosseria, com o grito que espanta passarinhos, com o papel de bala que suja o chão. Mas, também, com o meu silèncio e com a contemplação, quando, apenas, permito que a vida aconteça em todas as suas maravilhas.

Eis-me, pois, aqui, o homem que mudou o mundo. Tenho que acautelar-me para não estragar mais nada. Sou apenas mais um na fantástica sinfonia mas também na patética jornada humana. E isso me pacifica. Bom dia.

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