Mulheres loucas bendizendo o mundo

pictureA hora é das cerimônias de adeus, de adeuses. Então, olha-se o que se guardou, sem sequer se lembrar do que houve. São baús, materiais e da memória. Na verdade, nem sei o que há neles. São caixas, caixotes, muitos e muitos, daqueles que são parte de promessas nunca cumpridas: “algum dia, vou abrir, arrumar, catalogar.” Quando ou se o fizer, tenho quase certeza de, num deles, vir a encontrar a caixa de sapatos com o meu jogo de futebol de botão. Não posso tê-lo perdido, pois o meu Baltazar era tesouro de dar inveja aos garotos de toda a vizinhança: grande preto, botão roubado ao casaco de uma tia rica, um “manteau” de madama.

Poeira, recortes de jornais, papéis rabiscados, folhas soltas, cadernos de capa preta onde se registraram emoções de adolescentes, poesias perpetradas, talvez velhas cartas, mas não as de amor, que cavalheiros as devolviam se o romance chegava ao fim. Detive-me num pedaço de papel, em rabiscos sem data. Estava escrito:

“Era apenas uma sacada. E, sob ela, a rua. Pessoas, umas iam, outras vinham. Carros passavam. Primeiro, vi as árvores, plantadas em espaços pequeninos de terra, mas esplendorosas, todas elas. Então, o homem velho saiu à porta de sua casa, uma vassoura na mão. Com o cabo, espetou a árvore. Como que espantados, galhos secos e folhas começaram a cair do alto das ramagens. Sorri. Aquele homem preservava a sua única mas imensa paisagem: uma árvore envelhecida.

O olhar, não sei se por gostar do que vira, continuou vagando. E, quase lentamente, fui dando-me conta de que, embora estando lá e sendo parte daquilo, eu estivera alheio. E surgira-me, feito um milagre, o momento de olhar, de apenas olhar, apenas de olhar. E ver.

A mulher parecia bailar em torno do automóvel. E conversava com ele. Negra, alta, magra, muito magra, cabelos quase todos brancos para uma mulher ainda jovem. Ela conversava com o automóvel, tive certeza disso. Pensei estivesse bêbada. Depois, avaliei melhor, meu olhar pensou ver uma louca, devia ser uma outra mulher louca dentre os tantos loucos que passeamos pelas ruas ou ficamos em sacadas. Ela, a louca, ia e vinha no mesmo pedacinho de calçada e conversava com o automóvel. Somente um louco conversa com automóvel, pensei.

O olhar aguça a alma. E, então, a minha ficou alvoroçada, curiosa. Deixei a sacada, fui à rua. A loucura daquela mulher me atraía. E, no fundo, eu queria saber o que ela falava para o automóvel. E se ele respondia. Ao me aproximar, ouvi, com clareza, o que a mulher louca falava para o carro: ´Você não está com medo, aí tão sozinha? Não fique com medo, amor, mamãe está aqui olhando…`

Dei dois passos, querendo retornar, a certeza da loucura daquela mulher. Mas retrocedi, como se algo mais forte me chamasse. A louca continuava falando, com doçura: ´Não tenha medo, amor. Mamãe está aqui.` Então, meu olhar desviou-se da mulher, voltou-se para o banco traseiro do automóvel e lá estava, chorando, uma criancinha loura, pouco mais do que um bebê. Compreendi tudo: o pai ou a mãe, indo a algum lugar, deixara a criança fechada no carro. E aquela mulher negra, louca – pois era realmente louca – vendo o bebê fechado, ouvira a voz do útero e da alma, postando-se ao lado do carro como um cão de guarda, generosa, doce, santa. Louca, era mais responsável do que os pais daquela criança.”

Manchas tornaram ilegível o restante dos rabiscos. Uma frase, incompleta: “… mas com a sabedoria e a mansidão dos santos.” Outra, ao final do texto: “Mulheres loucas bendizem o mundo.”

Não sei quando escrevi, se publiquei. Mas ficou-me o desejo de sair por aí, à procura de mulheres loucas que, ainda, bendigam o mundo. Bom dia.

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