Namoradinho da avó

pictureEntão, decidi entrar no espírito natalino, muito embora não saiba qual. Espírito natalino, dizem, é de amor. De que amor, não sei.

Vai daí, pensei no moço, jovem jornalista, que – sabendo de minhas serestas na juventude – perguntou-me se eu conhecera o namorado de sua avó, aquele que – dizia ela – lhe fora o grande amor da juventude. Ruborizei-me. E lembrei-me do João Chiarini, falando dos amores de Piracicaba, em Piracicaba, glorificando-os, despertando delírios e atiçando a imaginação. De repente, eu estava amando Piracicaba como jardim das delícias. Nem precisava ser real. Como Agostinho, eu queria “amar o amor…”

Ao longo da vida, fui apaixonando-me. Por pessoas, por pedras, por lendas. E, quando não havia paixão real, eu inventava. Mas percebi que os poros de Piracicaba transudavam paixão. Com o Chiarini, comecei a ter olhos para tudo. Piracicaba dava romance, era um romance. De dia, eu andava por aí com o João e ele me contava: “à porta do Hotel Central, Almeida Júnior morreu por amor; naquela república, o pai da moça matou o amante dela.” E, ao escurecer, eu caminhava, noite a dentro, com Neguito, Júlio Bluhns, que me contavam dos grandes amores na zona, nas casinhas à beira do Itapeva. O próprio Neguito quase morreu de amor, miseravelmente traído pela mulher amada. Anotei, registrei, vivenciei.

Era outro, porém, o meu sonho: eu queria ser escritor de uma cidade cinzenta da Noruega. Mas tinha acontecido o “Orfeu do Carnaval” e, conhecendo o Neguito, desisti de ser escritor norueguês para tentar escrever sobre o Orfeu da tragédia caipiracicabana. Que existia. E que palpitava nos romances escondidos, nas paixões ocultas em salões, casas, igrejas, capelas, escolas. Piracicaba era uma cidade no cio. Como a Paris de Proust, como a Salvador e a Ilhéus de Jorge Amado. Em cada nossa esquina, havia uma história de amor.

Ser escritor aqui, daqui – eis o tesouro que me legou Chiarini, o mágico da aldeia. A partir dele, tive olhos de ver que as paixões do mundo aconteciam entre nós. Era verdade. Aconteciam. E, mais do que apenas anotá-las, quis vivê-las. E vivi as que pude. E as que não pude vivenciar, anotei-as, registrei-as, maravilhas de amor acontecidas nos silêncios de minha terra. Vida e morte, céus e infernos, tudo aconteceu. O cravo brigou com a rosa, a canoa virou, “o anel que tu me deste era vidro e se quebrou”… Há tantas belezas, beleza tanta, que, hoje, peço aos deuses o tempo infinito para poder contá-las, uma a uma, um romanceiro caipira. Pois foi aqui que viveram Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Lancelot e Guinevère. Piracicaba, terra da paixão.

O moço, jovem jornalista, quis saber se, nas minhas serestas de juventude, eu sabia quem fora o namorado de sua avó, aquele com quem ela vivera a grande paixão da mocidade. O moço tinha vestígios e indícios, sem perceber que são neles, nos indícios e vestígios, que se guardam mistérios e verdades. Se amores deixam rastros, quê mais revelador do que eles? O moço disse de um baú onde sua avó guardava velhas cartas de amor. Da chave, ninguém sabia. E que a avó, de quando em quando, recolhia-se no quarto, esparramava as cartas na cama, ficava lendo-as. E que, ao retornar à sala, tinha os olhos vermelhos.

Uma onda de calor aquentou-me o coração e, depois, foi como que uma agulhada entre doída e suave. Tive vontade de acariciar os cabelos do moço. Pois dei-me conta de que ele poderia ter sido meu neto. Se o serenei, não sei. Mas, mentindo, lhe garanti desconhecer quem fora o amor da juventude de sua avó. Bom dia.

Deixe uma resposta