Nas mãos de Deus e ao deus-dará

picture (13)Não sei como andam as coisas por aí, se se complicaram, se começam a desanuviar. Mais do que nunca, acredito na retomada de valores perdidos por algum canto de tantos caminhos equivocados de minha geração. E creio ter conseguido explicar, a alguns jovens, o que entendo por esse “eterno retorno” em que acredito. Não se trata de retrocesso, mas de retomada, de busca, de reinício. É como acontece no cotidiano das pessoas se e quando, por exemplo, perderam a carteira. Quando se dão conta da perda, retornam aos lugares por onde passaram antes, na expectativa de encontrá- la. Volta-se atrás em busca. Muitas vezes, consegue-se recuperá-la. Quando se perdeu em definitivo, perdida está.

Há pouco tempo, uma jovem mãe me contava de sua angústia com a filha adolescente, menina então com 13 anos. Na escola, os coleguinhas humilhavam-na querendo dar-lhe uma carteirinha de BV, significando “boca virgem”, a garota que não se deixara beijar na mania e no festival tolo de beijos de boca em boca., o chamado e estúpido “rodízio de beijos”.

Há perplexidade entre os pais, quanto à educação dos filhos: para ser espertos e sobreviver na selva, para ser dignos? Torço para que escolham pela dignidade humana, pois para nós, avós, os limites se tornam muito claros: somos coadjuvantes, com falas limitadas, papéis complementares. Muitos avós deixam “nas mãos de Deus”. Mas Deus, quando são humanas as responsabilidades, nada tem a ver com elas.

Ora, corro o risco de ser visto como passadista, tradicionalista, sei lá mais quais rótulos escapam dos lábios dos “soi-disants” moderninhos. Mas não importa, mesmo porque não tenho mais tempo a perder com modismos. O fato é que, para se enxergar à frente, é preciso vir de trás. Ou, então, retroceder um ou alguns passos. O abismo ou está sob os pés ou ficou atrás, por superado. A vida é feita de atalhos, de pontes, de referências. E quem os conhece, muitos deles, são pais, mestres, sábios. Crianças e adolescentes nada sabem, a não ser o deslumbramento e o susto diante da vida. E os moços, nada além de seus músculos, hormônios e glândulas.

O Ocidente ficou diante da alternativa dramática anunciada por Lebret: a sobrevivência ou o suicídio. Preferiu o suicídio. Começou na soterração de valores, não apenas culturais ou morais, mas valores atávicos, ancestrais, arquetípicos. Tornaram-se supérfluos descartáveis. Quase todos os símbolos, perdemo-los: os da pátria, sociais, familiares, até mesmo religiosos. Brincamos de produções em série, de “prêt-à-porter”, descartamos tudo, incluindo o sagrado. Ao romper rituais – especialmente os iniciáticos – ferimos de morte os referenciais fundantes da vida.

Esses rituais iniciáticos e ritos de passagem marcam a humanidade desde os povos mais primitivos. É a iniciação em outra vida, a da maturidade; iniciação em mistérios desconhecidos; algo que morre para ressurgir. O adolescente é introduzido na vida adulta; o adulto é admitido a compartilhar de outros mistérios. Assim é nas sociedades secretas, nas tribos primitivas e nas sociedades cultas. Na religião, o Batismo cristão é um rito de iniciação; entre os judeus, o Bar Mitsvá é o rito de passagem do menino para a vida adulta. Povos circuncidam seus adolescentes, promovem procissões, fazem cultos.

O noivado, casamento, as bodas sempre foram ritos iniciáticos. Não sei, agora. E era também esse o significado do Crisma, maturidade da fé. E, num sentido gracioso – mas não menos significativo – o baile das meninas de 15 anos, quando se apresentavam oficialmente à comunidade. Também ritualístico – e com resquícios de caráter sagrado – era a missão de tios ou padrinhos levarem os garotos de 13 a 15 anos à iniciação sexual com mulher adulta. Complicados ou ingênuos, eram pontos de balizamento. Modernos, passamos a tê-los como tolices.

Hoje, os adolescentes estão sem setas sinalizadoras. Entre deixar de ser crianças e tornarem-se adultos, ficaram sós. Sem rituais de passagem, estão à margem da sacralidade da vida, de belezas e responsabilidades. Sem estarem sequer nas mãos de Deus, ficaram ao deus-dará. Que adultos esperamos venham a ser? Mas é angústia gratuita, a minha. Sou apenas um avô. E bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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