Natal e direito ao sonho

picture.aspxHá dores de Natal, mas confesso não mais tê-las, nem sequer aquelas que existem na justa medida. Como lá seriam elas, dores na justa medida? Como, penso eu, as que sempre se tem ao ver o filme “Casablanca”. Sabe-se do final, mas sofre-se o tempo todo, a expectativa de rever Ingrid Bergman indo-se, coração destroçado; Humphrey Bogart, fingindo rudeza. A história termina mas recomeça quando, outra vez, se assiste ao filme.

Há alguns anos decidi que Natal é representação. Já se sabe a história, não há como alterá-la: o herói morre no fim, aquela criança que recebeu presente de reis, que cresceu “em graça e sabedoria”, que cresceu, fez-se homem e sonhou um mundo melhor, anunciando-o, sendo perseguido, incompreendido, julgado, crucificado e morto, conseguindo ressuscitar no terceiro dia. Ora, nada mais será de verdade, pois aconteceu antes. Logo, é representação, o faz-de-conta. Por que sofrer com isso? Que se sofra na justa medida, como vendo Casablanca.

Meu pessoal começa a chegar. De Natal, tristezas e saudade que tenho, essas são minhas. Natal, penso eu, se faz festa de reencontro, dias de esbanjar beijos e abraços que apenas damos e trocamos na medida da loucura universal: de quando em quando, de quando em vez, quando é possível.

Ora, filhos repetem os pais. E pais repetem-se nos filhos. Quase sempre, demora-se a aprender. Mas aprende-se. Começo a fazê-lo, vendo-me em meus pais, percebendo filhos vendo-se em mim, essa corrida venturosa onde uma geração passa o bastão à outra. E, como se repetindo meus pais, eis que me vi, eu próprio, orientando a arrumação da árvore de Natal, exigindo mais cuidados do jardineiro no trato do jardim. Pois meus netos chegam e me sinto como o pai do filho pródigo, ansioso pelo abraço, após mandar preparar as mais belas vestes, o mais suculento cordeiro. Natal é isso. Tem que ser.

Desta vez, não haverá problema social, injustiça, fome alheia, desgraça de terceiros, nada e ninguém impedindo-me ser o anfitrião da alegria. Minha mãe – percebo esse milagre cada vez com mais clareza – conhecia a dimensão estética da vida. Para ela, era como se houvesse beleza e arte até mesmo na dor. Se o coração sangrava, lágrimas vindo-lhe, ela as engolia, transformando dor e lágrimas num sorriso lindo. Foi com ela que aprendi: “o coração é seu, mas o rosto é dos outros.”

Desde minha meninice, vi, na casa de meus pais, o mistério da convivência harmoniosa entre o sagrado e o profano. Mesmo quando a pobreza e o luto nos machucaram, nunca meus pais perderam a dimensão do belo: ele, com o violino nas imensas mãos de atleta; ela, com seus pincéis, a tela para pintar. E, se havia tão só pão com mortadela para comer, a mesa parecia posta como que para um banquete real, a toalha impecável, vaso de flores colhidas no quintal. Até hoje, como pão com mortadela para, de quando em quando, sentir-me rei.

Sagrado e profano convivendo em seus limites, eis o segredo que me vem da infância. Sempre houve, pelo menos, um brinquedinho para cada um de nós. Pois, se não havia dinheiro, meu pai – com serrote e formão – criava bonecas e cavalinhos de madeira. E, na sala pequenina, nunca faltou a árvore de Natal, feita de panos e papéis coloridos. E uma vela acesa para iluminar o presépio nascido das mágicas mãos de meu pai. Meus netos têm direito ao sonho. Neste Natal, tentarei, de novo, provar-lhes que vale a pena tê-los. E vivê-los. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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