Novos coronéis, novos cabrestos

picture.aspxA pouco e pouco, começo a entender alguns desânimos. E, então, sinto-me tolo. Mas resisto a alguns cansaços.

O primeiro fiapo de consciência política foi-me despertado na adolescência, o impacto da morte violenta de Getúlio Vargas. Eu tinha 14 anos. Comecei a olhar, tentando ver. E enxerguei misérias do que, já àquele tempo, se dizia ser “democracia brasileira”. Eram os currais eleitorais. Ainda existiam. E os coronéis, também. Bandos de eleitores eram transportados à cidade, vindos da zona rural. Ficavam amontoados em cercados, em galpões, os candidatos ofereciam-lhes sanduíches, refrigerantes. E as cédulas eleitorais. Homens eram como gado em currais, tangidos com falsas doçuras, presos pelo cabresto.

Passaram-se 50 anos, mais do que isso. E poucas realidades continuam tão pequenas e mesquinhas quanto campanhas eleitorais, lutas pelo poder. Parece confirmar que “nada há de novo sob o Sol.” Em política, o importante continua sendo o resultado, tendo o poder como fim. E esse fim – o voto e o poder – ainda tenta justificar os meios, todos eles, incluindo ilícitos e imorais. À ciência e arte do bem comum, política fez-se teatro de simulação e dissimulação. Políticos simulam o que não são. E dissimulam o que realmente são. Isso vale, também, para a fome de poder em universidades.

Uma das mais dramáticas e cruciais questões da humanidade -agravadas com situações inéditas diante de novas descobertas e técnicas – é encontrar o piso sólido do comportamento humano. Já se fala, cada vez com mais insistência, em uma “democracia ética”, partindo-se do princípio universal de fundamentos plantados nas funduras da alma coletiva. É algo, por assim dizer, eterno, criador de religiões e culturas, a capacidade humana de ver-se a si mesmo no outro, o “outro como eu mesmo”. Nesse bem, está a base do direito, da justiça, das civilizações solidárias. Portanto, o outro jamais poderá ser instrumentalizado. O outro – além de sujeito – é um fim. Não importa de qual política se trate. Mas é conveniente, aos aventureiros, estimular a ignorância, impondo – em nome da liberdade – escravidões e abusos ideológicos. Há novos coronéis e novos cabrestos.

A falsa democracia brasileira nivela por baixo, desqualifica valores, não se importa com méritos. Tome-se, por referência, um cientista: ele pensa, reflete e analisa antes de dar seu voto. Algum “soi disant” pastor de igreja de porta de garagem, porém, dá ordens e, feito um rebanho, milhares de pessoas votam pelo cabresto. O voto do cientista tem peso menor do que o do analfabeto induzido por um religioso. Aos novos currais, dá-se o nome de democracia; do cabresto da fé, dizem ser voto.

A promiscuidade político-religiosa corrói qualquer projeto democrático. É laboratório de corrupção. Seitas não são partidos políticos, nem pretensos pastores têm o direito de manipular a boa fé de um eleitorado ingênuo e sofrido. Coronelismos anteriores foram causa de revoluções sangrentas, votos de cabresto infelicitaram este país. O comércio da fé em lutas pelo poder cheira caso de polícia. O abuso do poder ideológico é mais nefasto do que o do poder econômico. E isso vale, também, para universidades.

No “Hamlet”, Shakespeare mostrou haver “algo de podre no reino da Dinamarca”, podridão tal que os modelos de virtude tornaram uma rainha incestuosa e transformaram em prostituta uma donzela apaixonada. Há algo de podre também no reino desse conúbio obsceno entre políticos e pastores. A “voz de Deus” desafina, quando usada como cabresto de novos coronéis. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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