O amigo invisível

O texto foi publicado em O Diário em 19 de março de 1982. E depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

Ouvi e não vi. Ouvi e não escutei. Tão grande era o silêncio dentro de mim que nem sequer percebi a presença de alguém ou o som de uma voz. Foi como se, cansado de meus cansaços, ferido de minhas cicatrizes, a alma em frangalhos, não percebesse aquela presença, nem sempre a sua mão em meu ombro, o olhar enternecido diante de meu angustiado olhar. Devo pedir-lhe desculpas. Pois pensei em pai e pensei em mãe, pensei em irmãos e esposa e filhos, pensei em um deus que me pareceu abstrato e intangível. Queria tê-los ao meu lado e não percebi haver alguém mais próximo de mim do que poderia supor.

Quis ir muito longe, mas o que buscava estava perto. Não ouvi o silêncio, pois estava à espera de uma voz. Pensando em pai e mãe, no calor de irmãos, na ternura de mulher e filhos, eis que me perdi. Cego, não vi alguém que me olhava, que me via, disposto também a ouvir-me, a escutar-me, a recolher-me as angústias, a livrar-me das agonias. Olhei e não vi. Olhei e não escutei. E havia alguém ao meu lado, seu silêncio ecoando-me na alma, dizendo-me que não estava só nem era órfão na vida, nem um irmão sem irmãos, um pai sem filhos, um homem sem mulher. Havia mãos abertas e não as tomei, ombros que poderiam recolher-me as lágrimas e não percebi.

Devo pedir-lhe desculpas. Ou perdão? Desculpas e perdão a um amigo. Pois fui cego e não vi. Fui surdo e não escutei. E há dois mil anos aquele homem disse que tem um tesouro aquele que tiver um amigo. Tenho um tesouro e me senti miserável. É a lição que me fica. Ou o castigo que recebo? Não escolhi pai e mãe, não pude ter irmãos como eu quis e nem os filhos vieram conforme eu idealizei. Mas escolhi o amigo. E ele me escolheu. Apenas a própria mulher e os amigos é que podem ser escolhidos. Os demais são o que e como são.

Agora, não sinto amargores de solidão, nem os limites de minha fronteira. Sinto, mais do que tudo, ser fictícia e irreal a minha pobreza espiritual. Eu tenho um amigo, e portanto, um tesouro. Peço-lhe desculpas: eu era rico e fiz-me pobre. Agora vejo-me com a esplêndida riqueza preparada para conviver com ricos e pobres. Entre os tristes, estarei feliz. Entre os amargos, terei doçuras. Pois tenho um amigo. E o que mais pode um homem almejar na vida? Quis ter muitos e me perdi. Enfim, o encontro, o reencontro. Bom dia.

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