O “Cemitério dos Índios” será respeitado?

arethusina1O homem se tornou humano à vez em que sepultou seu primeiro morto, familiar ou amigo. Antes disso, mortos eram deixados aos abutres, expostos a todos os elementos da natureza. Ao enterrar seus mortos, o homem revelou consciência da dignidade da existência, do próximo e de si mesmo. Tanto assim foi que, com o tempo, mortos ilustres eram sepultados em verdadeiros palácios, erguidos em direção ao céu, enriquecidos pela arte e pelos tesouros de sua gente. Cemitérios tornaram-se – então e para sempre – solo sagrado, campo santo, necrópole. Quanto mais civilizados os povos, mais respeitosos são para com seus mortos. Em mão inversa, quanto mais bárbaros, mais são indiferentes e desrespeitosos.

Piracicaba parece estar, agora, diante de uma dessas provas fundamentais: somos ainda civilizados, mesmo perdendo a antiga nobreza, ou caminhamos, realmente, para a barbárie descontrolada? A resposta – pelo menos provisória ou relativa – pode ser-nos dada à luz da informação de que, na histórica Fábrica Boyes – criada por Luiz de Queiroz e palco de história e cultura memoráveis – um grupo de empresários – já conhecido por outras realizações cada vez mais ousadas – estaria pronto para erigir, no local, um dos novos monumentos ao mercado. A iniciativa até que poderá ser louvável, apesar de ser, aquele, um dos mais históricos sítios de Piracicaba. Fica a pergunta: e o que será feito do “Cemitério dos Índios”? Será que os empreendedores sabem de sua existência? E essa nova Piracicaba, sabe que – naquela área e antes da chegada do homem branco – índios haviam criado o seu campo santo e sagrado, descoberto em buscas arqueológicas?

Se uma cidade e um povo perderem a sua história e suas raízes, eles – cidade e povo – deixam de ter qualquer importância, a não ser a de objetos da economia. Sem identidade, deixam de ser sujeitos. Piracicaba está cada vez mais próxima de cair nesse abismo da banalização e do desprezo por si mesma. A luta de tantas gerações anteriores parece estar tornando-se inútil diante da sanha irrefreável da devastação. Por que toda aquela área, nas últimas décadas, foi totalmente abandonada, esquecida, menosprezada e até mesmo desvalorizada? Por ignorância ou por ganância imobiliária?

O então prefeito Nélio Ferraz de Arruda – há quem se lembre dele? – pretendeu, homem culto e sensível que era, adquirir o Solar de Luiz de Queiroz, hoje em mãos de particulares. Nélio queria preservar a grande história escrita por Luiz de Queiroz, transformando o solar – chamado de “Seio de Abrahão”, tal a sua beleza – para ser residência oficial da Prefeitura, acolhendo visitantes ilustres e personalidades. Nélio queria repetir o que, depois de Luiz de Queiroz, outros proprietários da bela mansão fizeram: hospedar grandes nomes humanitários, conforme aconteceu com a visita de Rudyard Kipling àquela casa. Não o conseguiu. E seria a sua grande e talvez única obra, pois, como prefeito, Nélio foi um bom poeta.

O inesquecível artista plástico Archimedes Dutra foi um dos que se abismaram com a riqueza arqueológica daquele local, recolhendo peças de cerâmica que devem, ainda hoje, estar no Museu Prudente de Moraes. A historiadora e doutora Marly Perecin tem detalhes dessa grande história que jaz sob a terra de onde é, agora, a Praça Ermelinda Otoni de Queiroz, esposa do também imortal Luiz Vicente de Souza Queiroz.

Uma das características de nossos tempos é a vitória do profano sobre o sagrado. Mas é vitória de Pirro, pois a voz do sangue, dos ancestrais, ecoa na história e, de repente, volta a ser ouvida. Aquele campo sagrado será vítima da profanação do mercado? Ou um raio de lucidez e um rasgo de civilização irão resgatá-lo como uma das nossas heranças às gerações futuras? Pensemos em bisnetos, pois os netos já pertencem a uma geração perplexa.

O tempo dirá e os fantasmas dirão. Porque, naquela região, o mito e o folclore assombram: a casinha de Rosa de Jesus, o cemitério indígena, o Homem da Capa Preta. Quem não acredita em bruxas pode rir-se. Mas elas existem. Bom dia.

2 comentários

  1. Rodrigo Sarruge Molina em 18/09/2015 às 08:10

    Sem pressão e mobilização popular, assim como os índios piracicabanos exterminados pela empresa colonialista, os cemitério também será pelos capitalistas….

  2. Eloah Margoni em 18/09/2015 às 20:50

    Maravilhosa crônica do absoluto Cecilio Elias Neto, memória e arquivo vivos dessa cidade

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