O divino no asfalto

O texto foi publicado em O Diário em 10 de setembro de 1979. E depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

Os simples sempre descobrem antes: viver é um ato permanente de louvor a Deus. Os sofisticados demoram a aprender. Pois, na verdade, as alegrias são maiores do que as tristezas. Acontece, apenas, pequeninas, nem sempre as alegrias ficam, mas as tristezas sempre demoram a nos deixar. E a verdade é que o homem não foi criado para egoísmo e a visão errônea dos valores da vida que nos inquietam e amarguram.

A cada dia, fortaleço-me em algumas convicções que, antes, me eram mistérios. Na vida, o mais importante é crer. A fé preenche os vazios, impede as tolices, desperta a esperança. Não se trata de simples e humano otimismo irrealista, mas arraigamento de uma de nossas poucas verdades. A certeza de que nunca se está só mesmo quando, ao lado, não se tem mais ninguém. A convicção de que, por mais longo seja o túnel, ao final surgirá à luz. A partir daí, as belezas da vida afloram da própria simplicidade das coisas; o silêncio brota até mesmo do murmúrio das multidões; a paz surge ainda que nos aparentes campos de batalha.

Agora, aprendi a fazer algo que sempre me fora difícil: pedir pelo dia que começa, agradecer pelo dia que termina, não apenas por palavras, mas, também, em presença. Sempre me enciumei dos amigos que o faziam, nas suas idas e vindas do trabalho, detendo-se por alguns instantes no envolvimento penumbroso de capelas e de igrejas pequeninas. O meu pangaré continua sábio. Tira-me do meio da multidão e me derruba, diariamente, de manhã e à tardezinha, às vezes até em momentos inesperados, na quietude de um sacrário. Pedir e agradecer mais agradecer do que pedir deixou de ser hábito, tornando-se necessidade. A paz nos fortalece.

Vejo-o, em algumas vésperas, na Igreja de São Bento. E o mundo fica sereno e pacífico. Tudo é simples e linear: silenciosos e austeros, os monges beneditinos, com seus hábitos negros, tomam seus lugares diante do altar. O órgão anuncia a chegada da paz e do louvor. E, fortes em sua fé, os monges entoam o seu cantochão, com a harmonia dos que têm certeza de que conversam com Deus. Um canto de louvor, um canto de amor, que se espalha, cálido e envolvente, pelas paredes, penetrando as coisas e escolhendo o coração das pessoas para se aninhar.

E os homens se calam, silenciam-se, como se ouvir o coro dos monges fosse a mais pura forma de oração. São momentos enternecedores e tonificantes. O tempo pára e o mundo gira com a pacificidade do cantochão. Quando eles terminam e vou-me embora, carrego comigo uma dúvida: qual o sonho, qual a realidade? Começo a acreditar que ouvi-los não é, apenas, uma forma de sonhar, mas uma realidade maior. O sonho mau é a violência de fora. A realidade ideal é a paz que se transmite entre aquelas paredes. A paz não é, pois, um sonho, mas uma realidade perceptível. O sonho mau, sonhamo-lo nós quando perdemos a sensibilidade de ouvir e de ver. Não há cidades desumanas. O homem é que se deixa desumanizar. E é mais fácil ser humano do que fera. Bom dia.

Deixe uma resposta