O dom da solidão

O texto foi publicado no dia 6 de agosto de 1982 em O Diário e depois selecionando para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Descobri muito tarde – embora não tarde demais – ser a solidão um dom, não um castigo. Soubesse-o antes, talvez não tivesse vivido tantos e longos anos em que a angústia chegou a parecer-me agonia mortal. Pois foi como se me fosse um destino conhecer a punição, permanente e sofrida, de, mesmo quando acompanhando, sentir-me solitário. Foi o que me dilacerou por tanto tempo, aquele sentir-me só, mesmo em meio às multidões. Tivesse, eu, sabido antes a solidão ser um dom e não castigo, certamente eu não teria sofrido as inquietações que conheci. Mas, ainda mais certamente, não teria descoberto as riquezas que, hoje, sei que descobri.

A solidão pode ser realmente um dom, precioso dom do qual a maioria dos homens foge, com medo de estar a sós consigo mesmos, diante da própria consciência, alma e coração desnudo. Quase ninguém, penso eu, se conhece a si mesmo – em suas qualidades e em seus defeitos, em seu potencial e em suas limitações – se não viver a difícil mas imprescindível experiência da solidão e do silêncio. A comunhão e a convivência entre as pessoas não se podem realizar se, antes delas, cada qual não tiver a sua experiência de solidão, penetrando no mais fundo de si, indo às suas próprias entranhas espirituais. Aquele que não se conhece pelo menos no essencial não conseguirá conviver com o outro, pois não o entenderá e não saberá compreendê-lo ou aceitá-lo.

Arrisco-me a uma irreverente comparação: Deus, ainda que trino, foi solidão antes de sua obra de criação. Solitário, não teria, Deus, desejado viver a sua experiência do silêncio? A planta sai da semente no silêncio; o homem é gerado no silêncio e na solidão de um ventre; o dia desponta e entardece no silêncio. Não digo da solidão forçada, do desamor e da ausência, da saudade e da necessidade da presença do outro, que esta é a solidão que martiriza e mata. Pois também esta eu já conheci e sei quanto é doída. Digo da solidão benfazeja, aquela que fertiliza a alma, adubando-a para a criação e para as decisões.

Hoje, entendo-a como um dom que, por medo ou por covardia, repelimos. Um dom que faz amadurecer na reflexão e na revisão de valores, de critérios, de verdades que não são absolutas. A solidão e o silêncio proporcionam a consciência da finitude. E lá me encontro eu, ainda outra vez – a milésima, talvez – em processo de revisão de mim mesmo. Outra gestação que levará a um novo parto. Já morri e renasci vezes sem conta. Espero poder fazê-lo ainda mais. Agora, porém, é a solidão que me ajuda em vez de machucar-me. Descubro-a como leal e sábia companheira. Aguardo que, ao parir-me a mim mesmo, venha à luz um outro melhor. Bom dia.

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