O estrangeiro

No início dos 1980, decidi mudar-me de Piracicaba. Antes, sempre recusara convites, contratos de trabalho de grandes empresas jornalísticas. Meu lugar – sempre foi o que me disse o coração – era aqui, minha terra, minha casa, meu lar, minha paixão. Acabei indo para São Paulo, mudei de atividades, comprei uma bela casa, matriculei filhos em escolas paulistanas, deixei tudo pronto para a mudança completa da família. Dividi-me, por um tempo, entre São Paulo e minha cidade. Mas desisti. Eu não saberia viver longe daqui.

Ainda nos 1980, preso e amargurado, decidi ir-me de vez. E escolhi Valinhos para morar. Quando tudo estava quase concluído, recebi a visita de uma das mais belas pessoas humanas que conheci, das mais cultas e generosas: o jurista Luiz José de Mesquita, casado com a irmã de D.Aníger Melilo. O doutor Mesquita – enquanto eu recebia outras visitas – ficou aguardando-me pacientemente no terraço, os braços cruzados, silencioso, circunspecto.

Abraçamo-nos e ele me pediu para sentar-me à cadeira a seu lado, de onde avistávamos a rua. Ele me apontou a árvore frondosa diante da casa, a esquina. Falou-me: “Não se mude, não deixe sua terra. Envelheça com ela. Se você se for, o arrependimento será para sempre.” E falou-me de sua experiência pessoal. Jovenzinho, deixara sua cidade, indo-se para São Paulo, estudando, fazendo carreira, casando-se. Era, ele, um dos grandes juristas do Brasil, latinista emérito, tradutor – do latim para o português, escolhido pelo Vaticano – da Encíclica Mater et Magistra.

Disse-me que, morrendo de saudade de sua terra natal, um dia voltou para revê-la. Era outra cidade. Ele percorreu ruas, jardins, praças, escolas. E não via mais o banco de jardim em que sentara para namorar o primeiro amor. E onde estava a árvore, atrás da qual as crianças faziam xixi? E o cinema, onde, no escurinho, beijou a primeira namorada? E a casa onde nascera? E aquela sorveteria da infância, o bar da juventude, o campinho de jogar futebol? Falou-me: “Envelheci sem ver as mudanças de minha terra. Não a vi transformar-se, não lutei por valores que foram destruídos, não ajudei a construir nada.” E completou: “Não se mude daqui. Fique.” Fiquei.

Dou razão ao finado querido Luiz José de Mesquita: é um privilégio envelhecer na própria cidade. Mas é amargurante ver as perdas, os rombos, as violentações, depredações, desrespeitos – vandalismos culturais que se fazem em nome de um falso progresso. Pois progredir – insistirei nisso até o fim – é ir em busca de um objetivo ético, de um desenvolvimento humanizado. Cidades são como seres vivos, já o dizia Agostinho de Hipona, que crescem harmonicamente para não se tornarem monstros. E elas têm alma e coração. Sem humanismo, cidades não passam de acampamentos hostis.

Estou envelhecendo em Piracicaba. Via-a envelhecer. Vejo-a mover-se sem saber para onde irá. Inicialmente, aos poucos e, agora, aceleradamente, vejo-me como um estrangeiro em terras estranhas. Onde estão os valores? Cadê a história? Por que existem cemitérios se ninguém se importa com os ancestrais que lá enterramos? Cadê a Pérola dos Paulistas, a Atenas Paulista, o Ateneo, a Florença Brasileira – cadê? E a Noiva da Colina, cadê?

Quando pessoas se sentem estrangeiras em sua própria cidade, é porque, na verdade, foi um mundo que acabou. Mundos acabam, dando lugar a outros. Que também acabam. É o ciclo vital, o ir e vir. O perigo é que, sem memória, os mundos que acabam acabem de vez. Meu mundo piracicabano ainda não acabou. Ele continua vivo dentro de mim. Sinto-me estrangeiro em minha terra, mas a carrego comigo para onde vou, onde quer que esteja. E contarei a história dela até o meu último suspiro. Bom dia.

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