O fantasma de Erasmo Dias

Compreender até compreendo, mas continua-me difícil entender porque, ainda hoje, há silêncios respeitosos e obsequiosos aos mortos, a todos eles. Deveria, penso eu, haver senso de justiça, evitando-se, assim, que todos fôssemos à vala comum da falta de memória. Morrer não pode significar absolvição histórica, perdão a maus feitos e crueldades. Há os que merecem ser lembrados por suas vidas honradas e os que precisam ser lembrados como exemplos ruins que não devem ser imitados. Ou pelo simples fato de ter morrido, Hitler merece perdão e absolvição históricas? O silêncio obsequioso pode, com o tempo, nivelar um Hitler a um Gandhi.

Pode ser, sei lá eu, que os mortos sejam perdoados e sobre eles recaia esse silêncio obsequioso por um medo ancestral de fantasmas, aquela história de que o espírito do morto pode puxar a perna das pessoas enquanto elas dormem. Pode ser. De minha parte, passei a acreditar em tudo, de Papai Noel a mula-sem-cabeça, em político honesto, em administração de muitas obras que não tenha corrupção, acredito em tudo. Acredito também em fantasmas e almas penadas, como em Deus e no diabo. Aliás, em muitos deuses e muitos demônios. Acontece, porém, que não tenho medo, por exemplo, de que o espírito de Erasmo Dias venha puxar-me a perna à noite. Conheci um velho senhor que, quando morriam pessoas más, dizia, caridosamente a cada uma: “Que as chamas do inferno lhe sejam cáusticas.”

Em democracias – ou ditas democracias – capitalistas, há um fenômeno formidável: quem quer lucro com alguma coisa se aproxima dos poderosos de plantão. Basta ver, porém, que não há corrupção sem obras. Em Piracicaba, empresas interessadas em transporte, em produção de bebidas, em construções, em saúde, em educação,sempre se acercaram de secretários estaduais, de ministros, de governantes. Erasmo Dias, quando vinha a Piracicaba, era saudado e incensado por transportadoras, por empreiteiras, por fabricantes de bebidas. Havia os chamados “livros de ouro” para coletar verbas para suas campanhas políticas.

Um dos orgulhos de minha vida também é o de ter sido alvo dos ódios de Erasmo Dias. Naquela sua tristemente célebre explicação sobre a invasão da PUC – “guerra é guerra” – desanquei o coronel da ditadura, em meus espaços em O Diário, usando de sua expressão para título de um artigo que se espalhou pelo Brasil. Àquele tempo, por falta de coragem de escrever, jornais e jornalistas divulgavam o que outros escreviam. O Diário teve a honra de ser um desses baluartes em defesa da liberdade que, ao final das contas, não deu em nada, a não ser aumentar o número de corruptos e abrir espaços a oportunistas que se revelam piores do que os tiranos da ditadura.

Em 1976, para a sucessão de Adilson Maluf, O Diário apoiou a candidatura de Romeu Ítalo Rípoli à Prefeitura. (No livro que reproduzimos em capítulos cá em A Província, está toda a história daquele tempo a partir de minha óptica.) Maurício Cardoso, jornalista querido e inteligente, era amigo de Jânio Quadros e teve a luminosa idéia – que se revelou infeliz – de pedir que Jânio se manifestasse a favor de Rípoli. À época, o prestígio de Jânio voltara com todo o fulgor. E ele estava no Guarujá. Maurício manteve contatos e lá nos fomos para o Guarujá, acompanhados do Peter, que era fotógrafo jovenzinho mas companheiro leal.

Foi inesquecível. Jânio estava de porre na casa de um amigo e parecia não nos ver. Deu um empurrão em dona Eloá, jogando-a no sofá, foi-se embora, uma comitiva agitada acompanhando-o. Seguimo-lo, sem saber para onde ia. Era um salão de festas onde Jânio iria confraternizar-se com delegados de Polícia de todo o Estado, sob o comando do coronel e secretário da Segurança Erasmo Dias. Publicar aquilo seria um escândalo, pois Jânio queria se firmar novamente como uma vítima da ditadura, mas lá estava ele ao lado de Erasmo Dias, bebericando.

Abelhudos, entramos na festa, o Maurício e eu à frente, o Peter tirando fotos. Aproximei-me de Jânio e lhe disse a que vínhamos e se aquelas fotos poderiam ser publicadas, pois a ditadura era feroz. Ele e o coronel Erasmo Dias mostraram-se inteira, absoluta e totalmente democratas: “que mal há?” Mas, ao sairmos, veio a pancadaria: delegados, seguranças, expulsavam-nos do lugar, tentando arrebentar a máquina do Peter, tirando os filmes da máquina. Mas Peter já havia trocado de filmes, guardando um deles no bolso. Publiquei a notícia, o instinto me levando a não divulgar a foto, guardando-a como prova. Erasmo Dias me chamou de canalha, mentiroso, que eu nunca estivera lá. Jânio me processou, através do advogado JB Viana de Moraes, após uma uma delação de um líder metodista, Abner Perpétuo – que queria ser reitor da UNIMEP – de mim, como jornalista. Então, publiquei a foto: os mentirosos eram Erasmo Dias e Jânio Quadros. Generoso, não falei que eram canalhas. Então, o processo desapareceu.

Guardo a foto até hoje, parte de meus arquivos. De minha parte, repito, em relação a Erasmo Dias, o que aquele velho e honrado senhor, caridosamente falava de cada um de alguns mortos canalhas: “Que as chamas do inferno lhe sejam cáusticas.” Tenho certeza de que muitos concordam com essa oração de justiça. Bom dia.

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