O homem que invejo
Não me canso de dizer de minha humaníssima capacidade de e em pecar. Especialmente se forem pecados capitais, gula e luxúria em destaque. Inveja também pode ser um pecado bom de se cometer, penso eu. E, na minha vida, já tive inveja de muitas pessoas, inveja sem rancor, inveja sem maldade, melhormente eu diria que uma vontade de ser como alguém, pois vontade de ter não me interessou muito. No entanto, um homem há – pois ele é imortal – que me despertou a inveja e o desejo de ser como ele é, de ter o que ele tem. Refiro-me a José Mindlin, que, como ensinou Guimarães Rosa, não morreu, ficou encantado.
Repito, repetindo-me: eu queria ser como José Mindlin. E ter a biblioteca dele, que, agora, passou a ser nossa, biblioteca monumental à disposição do mundo. Não conheço nenhum rei que deixou, como herança, seu reino ao povo; nenhum político que entregou seus bens à humanidade. José Mindlin nos deixou, como herança, a sua própria vida, o seu exemplo de ser humano e o seu mais precioso bem, tão importante para ela quanto a mulher Guita, quanto os filhos: sua biblioteca. O Brasil pode, ainda, não ter nenhum homem ou mulher merecedores do Prêmio Nobel. Mas o mundo não conhece ninguém que, como José Mindlin, tivesse feito de sua vida, de sua fortuna, de sua inteligência um patrimônio comum à humanidade.
A paixão de Mindlin pelos livros e pela cultura, pelas artes e pelo bem é um desses paradigmas, referenciais, modelos que precisamos guardar e cultivar em redomas especiais, com velas acesas e fragrância de rosas. Indo-se próximo dos 100 anos, Mindlin viveu quase um século em contato com esse universo especialíssimo da vida espiritual, caçando, pelo mundo, tesouros ocultos em páginas de papel. Até hoje, a humanidade se lamenta de ter perdido a lendária biblioteca de Alexandria, lamentamos tiranos e ditadores que incendiaram livros, espantamo-nos com a Inquisição que destruiu pensamentos e idéias. José Mindlin, como se antevisse os tempos descartáveis que vivemos e que ele chegou a acompanhar, recolheu os tesouros, guardou-os, cuidou deles, sabendo que seriam preciosidades preservadas da sanha criminosa da horda de bárbaros em que nos transformamos.
Invejei e invejo José Mindlin. Por sua biblioteca, sim, diante da qual a minha se faz tão pobrezinha, tão humilde que tenho pena dela e de mim. Mas invejei e invejo-o pela figura humana que é, pela presença moral e espiritual eterna que paira sobre nós. Pois ele está encantado, mais do que sempre foi.Ter inveja de ser pessoa humana como ele não pode ser pecado. Bom dia.