O lazarentinho

LazarentinhoLembro-me de quando cumpri minha promessa para com a adorável criançada do Colégio Lyon, de Campinas. Eram meus amiguinhos e leitores, escrevendo-me e-mails, comentando croniquetas, dando-lhes interpretações surpreendentes. Eles entendiam com o coração e, então, eu me sentia despido, nu na alma.

Quem tiver um mínimo de sabedoria deveria escrever apenas para crianças e idosos. Pois eles são as duas pontas da sabedoria. Crianças nem sequer iniciaram a caminhada; idosos já a completaram. Pessoas maduras, estas permanecem, ainda, na estrada, no meio das coisas, em plena viagem, saindo de um lugar para chegar a outro. E, portanto, indo aos trancos e barrancos, em atropelos, quedas, tropeços, correrias, fugas e farsas. Nessa corrida, nem ouvem e nem falam, não perguntam e não tem respostas. Agem a partir dos hormônios. Moços, quando penso neles, ouço a sabedoria e o amargor de Lupicínio: “Esses moços, pobres moços, ah! se soubessem o que eu sei…” E ainda bem que não sabem. Mas essa é outra história.

O fato é que, certa vez, lá me fui conversar com os meus pequeninos leitores. Eles lêem e discutem, discordam cobram-me e encontram coisas que eu mesmo não descobrira. Por isso, quando lá cheguei, senti-me à beira de um ataque de nervos. Ora, me arreceio de crianças, que as tive aos montes, outras surgiram delas, a carne humana não se assossega. E aprendi ser impossível tapear os pequeninos, especialmente se com os tais discursos ditos politicamente corretos, falsos e idiotas. Criança sabe por intuição, antena que capta vibrações ao redor. Por isso, aprende por si mesma, mesmo quando nada lhe é dito nesses lares silenciosos ou ruidosos demais.

Tão nervoso lá cheguei que, à diretora e jovens mestras, aleguei excesso de calor, temperatura alta, pressão atmosférica pesada, causas de minha transpiração intensa, suores frios na testa. Pois, quando tenho medo, suo na testa. E meus leitores pequeninos me atemorizavam pois eu sabia: diante deles, a alma do escrevinhador seria radiografada, exposta em sua toda nudez. Ora, criança faz cada pergunta, não?

Confesso ter carregado comigo um preconceituoso congelamento de avaliação. Nos últimos tempos, a experiência em falar com estudantes fora decepcionante, tais a grosseria e desrespeito que vi em salas de aulas, professores quase agredidos por alunos, gritos selvagens. Há menos de um ano, cheguei a mandar às favas — numa de nossas vizinhas cidades — um grupo de 400 jovens a quem fui convidado a dizer algumas coisas. Foi impossível. Senti-me num circo ou no meio da Gaviões da Fiel, a gritaria, os urros de uma platéia que me via como o palhaço ou como a vítima a ser sacrificada na arena romana. Mandei-os literalmente às favas, contestando Fernando Henrique com sua teoria de diploma escolar: “Lula, sem escola, é mais refinado do que filhotes de papais apenas ricos, bárbaros com diplomas.” Da mesma forma como há malandros gerados por academias.

Quando ouvi o silêncio civilizado com que me receberam no Lyon, quebrei a cara: eu, tolamente, congelara alguns clichês decepcionantes. Naquele anfiteatro, enxerguei, ouvi alvíssaras de futuro: o silêncio respeitoso, a alegria civilizada, a naturalidade pacífica de uma pequena multidão de meninas e meninos cujas almas limpas lhes escapavam pelos olhos, pelos sorrisos, limpeza sem receio de se mostrar. Tive como que um lampejo de revelação teológica e filosófica: Adão e Eva perderam o paraíso quando se tornaram adultos. Pois, naquela sala, havia resquícios e sementes do paraíso original, aquele jardim que se diz perdido. Não, não se perdeu. A beleza original está no jardim da infância, daquela infância que vi no Lyon.

E, então, a saraivada de perguntas. E a fertilidade da troca de idéias. E a valentia da garotada em contestar. E a curiosidade de saber, de explicações. Foi quando um dos garotos me perguntou de uma crônica, a do “Turco Lazarento”, em que tentei contar como, em minha terra, lazarento pode ser xingação ou expressão de ternura e de amizade, até mesmo de amor. Repeti a história: um antigo amor, quando brigava comigo, me chamava de “turco lazarento”. E, quando mostrava estar amando-me, repetia com suavidade: “Meu turco lazarento.” O segredo está na entonação.

De repente, um garoto ergueu o dedinho, olhos brilhantes, rosto iluminado, queria falar. E falou, feliz: “Agora, entendi minha avó, que também é de Piracicaba. Ela me vê, me abraça, me beija e me chama de netinho lazarento…” Ele era um lazarentinho bem amado e não sabia.

 

Publicada originalmente no Correio Popular de Campinas em 28/12/2007

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