O Livro de Ouro

Sempre me estimulou a reflexão atribuída ao poeta grego Terêncio: “Sou um homem. Logo, nada do que é humano me é estranho.” Penso que penso, não consigo imaginar se, em tempos como os nossos, Terêncio conseguiria chegar à mesma conclusão. Pois, pelo menos a mim, me parece que, hoje, quase tudo que se diz ser humano é, na verdade, estranho ao homem. Se temos, em nós, deuses e demônios ao mesmo tempo, é como se os deuses estivessem escondidos. Ou subjugados.

As espetaculares novas tecnologias deveriam facilitar a vida do ser humano, tornando-a mais simples. Parece, porém, que ela se tornaram um novo e poderoso complicador. O celebérrimo e milenar desejo dos antigos – “otium cum dignitate” – de o homem ter direito ao ócio com dignidade poderia ter acontecido. Pois máquinas, instrumentos, objetos eletrônicos, toda a parafernália digital já fazem o que, antes, apenas braços humanos faziam. Em tese, portanto, deveria sobrar mais tempo ao homem. Para viver o ócio com dignidade, o tal ócio produtivo de que já nos falara o pensador Domenico de Masi. No entanto, com tanto tempo sobrando, o homem passou a sentir falta de tempo. Vá lá se entender.

Nos últimos tempos, das coisas e acontecimentos, eu os leio mais do que vejo e ouço. Vou lendo que lendo, vendo de quando em quando, ouvindo quase nada além das músicas que me embalam a alma. De qualquer forma – lendo, vendo e ouvindo – as coisas se me tornam cada vez mais estranhas. E difíceis. Vejam, por exemplo, todos esses escândalos de corrupção, dinheiro para bolsos de políticos e assessores, para caixas de campanhas eleitorais, ou direto para candidatos. Antigamente, era mais simples. Havia, apenas, o Livro de Ouro.

Candidatos a qualquer coisa – a prefeito, a deputado, a rainha do Carnaval, também estudantes – formavam uma comissão para angariar fundos. Na política, era uma comissão de pessoas conhecidas, os tais “varões de Plutarco”, ou que assim pareciam, probos e prestadores de serviços. A comissão comprava um livro para pedir doações para o candidato, indo bater às portas dos reconhecidamente ricos ou simpatizantes. As maiores vítimas dessa mordida eram, à época, Mário Dedini, Lino Morganti, Humberto D´Abronzo, Antônio Romano, os chamados “comendadores”. E os pequenos e grandes usineiros, obviamente.

Eles doavam dinheiro para a campanha e lá se registrava no Livro de Ouro: “20 mil cruzeiros (ou merréis), doação de fulano de tal.” Ficavam as doações registradas no Livro de Ouro e asssinadas pelos doadores. Mário Dedini, um especialista em diplomacia, separava, em época de eleições, quantias já determinadas para distribuí-las aos principais candidatos. Até no Carnaval, Mário Dedini abria suas burras e distribuía as caixinhas. O folião Neguito – o adorável Neguito – ia, com seu Livro de Ouro – capengando e se arrastando com suas feridas da hanseníase – diretamente à casa de Seo Mário. Que o recebia com todas as pompas.

As comissões de arrecadação para fins político-eleitorais diziam-se autônomas, enfatizando que agiam por iniciativa própria. Os candidatos fingiam não saber, pois era de bom tom – numa época de muitos e bons escrúpulos – que um futuro prefeito recebesse auxílio de empresários. Cada qual fingia de um lado e a vida ia sendo levada como mais serenidade, como se realmente fosse, como a escola, “risonha e franca”. Caixa Dois? É óbvio que havia, sempre houve. Mas com mais pudores e sutilezas. Naqueles tempos, até mesmo na política, podia-se dizer que “nada do que era humano nos era estranho.” Bom dia.

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