O mundo e o violão

picture.aspxSou desta terra de seresteiros. E de um tempo em que, nas ruas, havia mais luzes de estrelas do que de lâmpadas, ruas com perfume de damas-da-noite, de silêncios apenas interrompidos por trilares de apitos dos guardas. Ou de grilos. Passava-se por sob janelas e ouviam-se ressonares das pessoas ou contidos sussurros de amor. E, sem muito esforço, poder-se-ia sentir o cheiro de alfazema vindo de lençóis. E de manjericão.

As casas ainda tinham jardins e eles se abriam às calçadas. Plantavam-se rosas, muitas. E – como se destinadas a avivar sentimentos – elas encantavam com as cores da vida: vermelho, da paixão; amarelo, da saudade; rosas cor de rosa para dizer de amizade, de primeiras intenções. De violões nos ombros, moços iam-se pelas ruas, as mãos com verrugas de tanto apontar e contar estrelas. Pois eram tempos em que contar estrelas dava verruga nas mãos, diferentes de agora, tempos sem verrugas, sem mãos apontando estrelas, sem violões encantando calçadas. E ladrões de flores, cadê? Pois seresteiros roubavam rosas deixando-as à janela das bem-amadas.

Meu pai teve medo de meu violão. E de mim. Deu-me por desatinado ainda na adolescência: “tocador de violão, seresteiro, jornalista e escritor – meu filho é um caso perdido.” Duas madrugadas ficaram-me grudadas à lembrança. Uma delas foi quando, entrando em casa, não consegui enganar meu pai. Ele, acordado, me esperava. Nada falou, não tugiu nem mugiu. Apenas tirou-me o violão das mãos e o quebrou-me na cabeça. A dor, senti-a mais no coração do que na carne: como – sem violão – cantar, à namoradinha, que ela era “meu benzinho, luz dos meus olhos, desejo em flor?”

Outra, inesquecível, tive-a ao voltar também furtivamente, um outro violão no ombro, comprado com o dinheirinho de aulinhas particulares. Entrei em casa, acho que cambaleando ao sabor dos últimos goles de vermute, pois seresteiros inspiravam-se com vermute. Minha mãe me esperava, cúmplice e generosa. Fizera café, queria conversar comigo. Perguntou-me, compassiva: “O que você quer da vida, meu filho?” Eu tinha a resposta: “Primeiro, serei presidente da República para consertar o Brasil. Depois, vou consertar o mundo.” Apenas isso.

Lembro-me dessas belezas jovens por, cada vez mais, estar entendendo o Lula. A vida dele foi mais difícil do que a minha. Lula não teve oportunidade de fazer serestas por ruas tranqüilas, roubando flores de jardim, cantando, ao violão, canções de amor. Os sonhos de Lula são tardios, como os de homens que não tiveram infância, rudes que saltaram a adolescência. É bom sonhar. Mas sonhos e ilusões são próprios de cada tempo da vida. Um homem maduro com sonhos infantis corre o risco de não ser levado a sério.

Lula, porém, começa a entender. Demorou, mas já entende. Acontece com todo sonhador. Comigo, foi um processo: desisti de consertar o mundo e concentrei energias para consertar o Brasil. Logo, porém, desinteressei-me de ser presidente da República, por inútil. Decidi consertar São Paulo. Não deu. Armei-me de mais forças, jurei consertar minha cidade. Não consegui. Voltei-me ao bairro onde moro. Fracassei. Resolvi consertar meu quarteirão. Não deu certo. Pensei em consertar minha casa, mas meus filhos já tinham suas próprias famílias. Do mundo, sobrou-me o conserto de mim.

É o que me resta a fazer. Nem o violão sobrou. Então, vou ao piano, dedilho teclas, e invoco Maysa: “O meu mundo caiu…” Se caiu, tenho, pois, que reerguê-lo. E dou bom dia à tristeza. Logo, bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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