O padeiro da última ceia

santa ceiaO mais importante da história humana é o trivial. No corriqueiro, no cotidiano, repetem-se os grandes milagres. E aquele “nada acontece de diferente”, aquele “tudo sempre igual”, o “de sempre”. Eis o milagre: que, repetindo-se, as coisas ainda encantem o mundo. E as pessoas. O cheiro do café da manhã, espalhando-se pela casa: o que o substitui? E se, do quintal, vier um perfume de manjericão?

A epopéia humana, diz-se, divide-se em três eras: a dos deuses, a dos heróis, a dos humanos. O homem, no entanto, insiste em ser deus e herói, desprezando a beleza de sua humanidade. Há sempre alguém querendo ser Napoleão. Ou Jesus. Ou Tarzan. Mas o que seria deles se não houvesse os que, no anonimato, os serviram? Quem selou o cavalo branco de Napoleão? Quem preparou a comida ou lavou a roupa de Jesus? Quem cuidou da dor de barriga de Tarzan?

Antigamente, diante de alguém muito idoso, dizia-se, dele: “É tão velho que foi o garçom da Santa Ceia”. Mas nem Marx, tão preocupado com lutas de classes, fez pergunta inquietante: quem foi o garçom da Santa Ceia, quem serviu os apóstolos, quem varreu o chão, quem lavou os pratos? Para a história, passaram, apenas, os comensais. Ninguém fala dos que os serviram.

Se eu acreditasse em outras vidas, em reencarnações, acho que poderia identificar alguns daquela última ceia. Ora, que alguém ou alguns cuidavam, da comida e das roupas do Mestre e de seus apóstolos, isso não padece de dúvidas. As mulheres eram, ainda, donas do lar, guardiãs do mistério. Elas é que realizavam o milagre do cotidiano. E estavam ao lado de Jesus e dos apóstolos, ” tinham vindo com ele da Galiléia. Havia Maria de MagdaIa, Maria Betânia, Maria de Tiago, Maria de Cleofas, Marta, Joana, uma Salomé que não a outra, dona da cabeça de João. Com certeza, iavavam, cozinhavam. Não sei se passavam.

Mas e o pão da última ceia, o pão milagroso – o padeiro, quem foi? Aí está: se eu acreditasse em reencarnação, eu diria os padeiros da última ceia estão pertinho, reencarnados. Eles são negros, também descendentes de Sem. E, em Piracicaba, eles fazem pão há mais de 50 anos, começando em fornos mágicos de um sítio em Pau D’Alhinho, onde era o reino deles. Na cidade, ainda fazem um pão nosso de cada dia que é maná caído do céu. São os Soledade, cozinheiros cuja arte apenas a última ceia conheceu outros iguais.

Se reencarnação há, o João e a Elisa Soledade foram os padeiros da última ceia. A tardezinha, quando eu desapareço, há sempre alguém de minha família adivinhando para onde fui: “comprar o pão do João”. O perfume se espalha quase que pelo bairro todo. “Tem pão?”, grito. E a Elisa responde: “Quentinho, saído do forno”. É néctar de deuses, ambrosia, manjar. Por dentro, a maciez de algodão. A casca, crocante como pétala seca de flor…

Sinto-me herói, deus e humano, quando, pois, à hora da Ave Maria, é hora, também, de buscar o pão da Elisa e do João. Lambo e estalo os beiços, o estômago ronca de prazer antecipado. E a boca se me enche d’água à espera da lisonja ao paladar, a gula irresistível. Penso nos apóstolos, embevecidos, aguardando a partilha do pão. Fico nervoso: sou incapaz de partilhar o pão do João, quero-o só para mim. Então, pego o pão quentinho, saio quase correndo, escondo-me perto da Ponte do Morato. Taco uns pedaços de mortadela dentro e, “nhoc!”, mastigo, com volúpia, o pão da Elisa do João, padeiros da última ceia. E o milagre do cotidiano, o milagre do pão. Aqui, Ó, que eu conto onde está. E se acabar? Bom dia.

[texto publicado, originalmente, em 27/julho/2003]

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