O piracicabano Francarlos Reis

picture (39)Confesso não mais saber se me é angustiante ou confortador ir-me despedindo de amigos que se vão, de personalidades queridas que nos deixam, nesse meu mundo pessoal que vai ficando cada dia menor. Há a angústia da perda. Mas, ao mesmo tempo, uma estranha sensação de continuar sendo sobrevivente. Na dor, também existe não sei se egoísmo ou se um poderoso instinto de vida. Perdas, no entanto, machucam. Cada vez mais.

Fui despertado com um telefonema de Campinas, minha mulher hesitando em dar-me a notícia amarga: morrera, de repente e sem aviso, Francarlos Reis, o nosso Francarlos, o menino piracicabano que se transformou num dos grandes atores do teatro nacional, diretor, produtor, criador, músico. E seria enterrado em Campinas, já que se afastara de Piracicaba levando mágoas e tristezas. E Piracicaba, com exceção de poucas pessoas, nem sequer sabe que o grande Francarlos Reis é nosso conterrâneo, ex-aluno do Colégio Dom Bosco, discípulo de pianistas famosas, filho de família que teve grande expressão antes de ser abatida por tragédias humanas.

A última vez em que Francarlos Reis esteve em Piracicaba foi em meados dos 1990. Ele e Jece Valadão apresentariam uma peça no Teatro Municipal. Mas foi cancelada por falta de público. Havia apenas dois espectadores: eu e a que, então, era minha mulher. Francarlos não escondia a mágoa, pois ele nunca foi de esconder emoções ou sentimentos. E sua tristeza por Piracicaba aumentou, como se fosse, este, um lugar destinado a apenas lhe causar amarguras e desenganos. Fomos jantar no antigo Ponto de Encontro, na Avenida Independência e Jece Valadão, para amenizar a decepção de Francarlos, contava causos, aventuras, episódios de sua fascinante vida de ator. Ninguém, no entanto, conseguiu rir-se.

Francarlos Reis inspirou-me para a criação do personagem principal de minha primeira obra literária, o romance “Um eunuco para Ester”. Acompanhei a sua luta pessoal para definir-se sexual e profissionalmente. A história conta os conflitos daquele jovem nos complicados e confusos anos 1950/60, de tantos rompimentos, de quebras de tabus, de libertações nem sempre consistentes. A alma artística de Francarlos pulsava compulsivamente e até mesmo na Faculdade de Direito (PUC, Campinas), onde estudamos contemporaneamente, suas angústias não diminuíram. Era óbvio que ele jamais seria advogado, embora tivesse atuado na profissão. A arte o chamava.

Nestes anos todos, nunca deixamos de nos ver, de conversar, de trocar idéias. Em São Paulo, foram noitadas sem fim ora no Gigeto, no Franciscano, ultimamente no La Luna. E foi onde nos encontramos ainda em novembro, nosso último encontro. Fomos convidados, Maria Clara e eu, para vê-lo na perturbadora peça “A Cabra”. E, emocionados, saímos para jantar: Francarlos, José Wilker, Marco Caruso, José Renato, minha mulher e eu. O dia estava quase raiando quando saímos.

Então, aconteceu o inesperado. Ao se despedir, Francarlos me abraçou e começou a chorar aos soluços, choro convulsivo, lágrimas abundantes, como se sua alma lhe escapasse do corpo. E falou de saudade, de muita saudade. Dos amigos piracicabanos, de sua infância, de lugares de nossa terra que ele tanto estigmatizara. Nenhum dos presentes houvera, antes, visto Francarlos Reis chorar com tanta libertação. Emocionei-me e ficamos, por longos instantes, abraçados, como se ele precisasse de um peito amigo para chorar. Era uma despedida. Mas nem ele nem eu sabíamos.

Ele me prometeu vir a Piracicaba e, então, tocar, ao piano, o “Clair de Lune”, de Debussy. Mas me cobrou a peça que fiquei de escrever, na qual ele, Francarlos Reis, seria o único ator, um monólogo. Comprometi-me a escrevê-la, e foram-me saindo as primeiras páginas, cenas, falas e gestuais do personagem, algo delirante. Francarlos recebia o material, lia, animava-se , querendo conhecer o final.

Mas não haverá final. A peça também morreu. Era para ele, a peça era ele. Bom dia.

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