O rio, morto por omissão

Esse texto foi publicado em 12 de setembro de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Há coisas que não consigo entender. E é assim que Ilie sinto: intrigado, confuso diante de “Praças”, de “Marchas” de “Protestos”. A minha desordem é efeito dos 20 anos de denúncias, de acusações, de advertências feitas pela imprensa piracicabana, que pedia socorro pela morte lenta e inevitável do velho rio Piracicaba, sem que ninguém, ao longo desse tempo, tomasse atitudes objetivas. Era possível salvá-lo. Os braços, porém, cruzaram-se. Foram-se descruzar quando o rio estava morto. Não consigo entender.

Mesmo antes de as palavras poluição e ecologia se incorporarem ao vocabulário popular, havia uma outra, terrível e mortífera, que já nos ameaçava: o restilo. Era criminosamente atirado ao rio, contaminando-o, matando-o aos poucos. O saudoso e inesquecível Dr. Jaime de Almeida, do Instituto Zimotécnico, fazia denúncias e advertências pela imprensa, apontava soluções. Mesmo a Câmara Municipal — hoje, uma caricatura – atuava e denunciava. Não me lembro onde estava o povo. Talvez escondido, por não ter — quem sabe? — a sua “Praça de Protesto” e por a imprensa e Câmara serem indiferentes demais ao apelo que lhes faziam à participação da comunidade?

A realidade é que, há 20 anos, o restilo, os detritos industriais aqui mesmo de Piracicaba já envenenavam o rio, transformando o povo em bagaços de cana. O primeiro a ser denunciado foi o Sr. Lino Morganti. Em vez de ser punido, recebeu, do povo, um mandato de Deputado Federal e sentou-se, ele, ao lado desse grande mudo, que é Pacheco e Chaves. Depois, trouxe Juscelino Kubitschek para revelar prestígio, num memorável churrasco justamente às margens do rio destruído e contaminado. Em seguida, a obra assassina continuou com o Sr. Silva Gordo. Atrás dele estava, porém, o Banco Português, o seu prestígio de antigo Secretário de Adhemar de Barros. Ninguém atendeu ao pedido de socorro.

Os braços continuaram cruzados. E, depois, vieram outras indústrias, poluindo nas cabeceiras. Fez-se luto, fez-se protesto. Mas o rio já morrera. Quando denunciamos que o Projeto Corumbataí já estava condenado, ninguém se movimentou, ninguém quis preocupar-se com a única solução: o “Projeto Salgot Castillon’ — que recolhe as águas de nascentes municipais não poluídas e que não serão nunca poluíveis. Houve silêncio e omissão.

Marchar apenas agora é como acompanhar enterro. Prático e confortador para consciências culpadas. Acompanha-se o morto, mas nada se fez para salvar o enfermo enquanto teve vida. Faz-se um mausoléu para o defunto, mas nada se fez para curá-lo quando doente. Desculpem-me os marchadores pela minha ignorância. Mas quem, por mais de 20 anos, acompanhou as denúncias e denunciou, viu as advertências e advertiu — ouvindo, em resposta, apenas o silêncio — só pode ficar aturdido com o protesto pós-morte. Não se deve chorar pelo leite derramado. Importante é evitar que se derrame.

A Praça do Protesto me parece, infelizmente, o muro das lamentações. E os que marcham, madalenas tardiamente arrependidas pelo silêncio e pela omissão. Aceito o direito de espernear. Antes dele, porém, há o dever de agir. Bom dia.

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