O russo do João Chiarini

Esse texto foi publicado em novembro de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

A amargura que se vá, pois há recordações alegres a se reviver. Minha amizade com João Chiarini foi feita, também, de momentos cômicos, pois o João não conheceu limites. Em 1963, o Norlandio Meirelles — escritor, biógrafo de Castro Alves — veio a Piracicaba visitar João Chiarini e trouxe consigo um intelectual baiano, não me recordo o  nome do cidadão.  

Lembro-me, no entanto, do pedantismo e da arrogância do tal sujeito. Todos nós sempre fornos absurdamente pobretões, como se o dinheiro fugisse de nossas vidas. Mas o Norlandio Meirelles houvera ganho uma respeitável bolada, respondendo sobre a vida de Castro Alves, na TV Tupi, no programa “O Céu é o Limite”, no qual Chiarini também brilhara respondendo sobre folclore. O programa causava, na época, comoção nacional.  

E o Norlandio, com bom dinheiro no bolso e na vida, trouxe o amigo baiano para visitar o Chiarini e conhecer Piracicaba. Eu também era um duro, mas, em 1963, havia conseguido comprar o meu primeiro carrinho, um Gordini branco que era capenga de uma das rodas, mas que rodava. O João me telefonou: precisava mostrar a cidade para o Norlandio e para o amigo baiano, e não tinha como se locomover.  

Orgulhoso, montei no Gordini, taquei o João a meu lado, o Norlandio e o baiano foram na garupa. O coitadinho do Gordini quase arreou, mas deu conta do recado. E fomos rodando, rodando, os passeios inevitáveis: o Mirante, a Agronomia, o Engenho Central, o Palacete Boyes, o portal do Cemitério. Em dado momento, o tal baiano pedante começou a falar do “novo homem soviético” , da “decadência da arte ocidental” , da “arte a serviço do povo”, aqueles chavões chatíssimos que, no entanto, despertavam o vulcão erudito do João Chiarini.  

E João entrou em erupção, falando do comunismo, da União Soviética, enrolando o Norlandio e o baiano pedante. A certa altura, João falou: “Quando eu estive na União Soviética, fui ver o monumento que aquele povo heroico erigiu para Castro Alves, um poeta ocidental que nada teve de decadente” — fulminava ele, dando uma estocada no baiano e tentando envolver o Norlandio, um “expert” em Castro Alves.  

Então, aconteceu. O baiano se empolgou, começou a contar de suas viagens pela União Soviética, dos cursos que fizera lá, de seu aprendizado linguístico. E, convencido de que o João falava realmente a língua russa, começou a transar umas frases em russo. João respondeu: “o camaradóvisky, comunistóvisky, balalaikóvisky…”, sei lá mais que raio que os parta de “óviskys”.  

Então, o baiano ficou calado. E eu me orgulhei do João Chiarini, um piracicabano que sabia falar o russo, ora vejam! Meu Gordini até inchou de ardor cívico e de orgulho nacionalista. Quando deixei o baiano no antigo Hotel Central, ele me falou: “O Chiarini não fala merda alguma de russo, ele me enganou.” À noite, quando me encontrei com o João, na esquina do Banco do Brasil, falei, chateado: “Ei, João. O baiano disse que ocê num sabe merda alguma de russo e que ocê nunca esteve na Rússia.”  

João me olhou como se eu fosse um idiota: “Claro que eu não sei e nunca estive mesmo na União Soviética. Mas o baiano queria enganá nóis, pensando que nóis somo caipira. Ele também num sabe e nunca esteve lá. Ocê acha que eu ia deixá o cara botá banca prá cima de mim, um piracicabano?” É verdade: o baiano pedante também não sabia merda alguma da língua russa. Bom dia. 

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