O túmulo da bruxa

pictureAinda nem chegou o Dia das Bruxas e me sinto incomodado. Pois, à aproximação de dias tétricos, é-me inevitável pensar em uma tia minha já defunta. Tenho que exorcizar-me dela e ainda não consegui, apesar da orientação que colhi no livro de São Cipriano. Agora que essa tia morreu, posso falar mal dela à vontade. Ela era linda. Mas ruim. E era o que confundia as pessoas, pois, toda pessoa ruim tinha que ser feia como a Beth Davis. Minha tia era linda e má. E com nome poético, Rosa. Da flor, porém, a danada parecia ter só os espinhos.

Todos reconheciam: ela era parecidíssima com a Maria Felix, a mexicana que enlouqueceu uma geração. E, como a Felix – que judiou do Agustín Lara – minha tia poderia inspirar boleros desesperados boleros, como os daqueles tempos, de “Hipócrita” a “Perdida”. Cobiçada pelos homens, iludia os pretendentes. Para seduzir, ela acentuava, com lápis, uma pinta falsa que tinha ao lado dos lábios. E usava batom tão assanhado que sempre me pareceu vermelho de vergonha.

Até encontrar o viúvo rico com quem, velhusca, se casou, morou na fazenda da irmã, outra tia minha, numa cidadezinha encantadora, lugar que me adoçou a infância com prazeres e lembranças inesquecíveis. Tirar leite de vaca, andar a cavalo, brincar de Tarzan na mata e de Zorro com a meninada da casa dos colonos, nadar em riacho, saltar de cascatas.

Aqueles tempos, a década de 1940, do pós-guerra foram encantadores. Mas, também, com coisas idiotas. Ora, a casa da fazenda distava uns cinco quilômetros do centro da cidadezinha. E a alegria dos adultos era a de levar as crianças tomar sorvete na cidade, mas sempre a pé. Tínhamos que caminhar, no desassossego de passar, à noite, pelo cemitério. E minha tia era gente ruim.

Foi ela quem me ensinou a fazer caveira com metade de abóbora. Corta-se a abóbora pela metade, raspa-se o miolo, decepa-se a ponta que sobrou, fazem-se três furos, redondos, imitando olhos e boca. Depois de pronta, acende-se uma vela e bota-se a caveira-abóbora por cima. À noite, parece um fantasma. Minha tia Rosa colocava um monte de caveiras de abóbora no muro do cemitério, calculando a hora que retornaríamos da cidade. Cobria-se com um lençol branco e saía de trás das árvores fazendo “buuuu” para os infelizes sobrinhos.

Era tão má que, em vez de morar na confortável casa principal da fazenda, escolheu ficar numa pocilga no meio do mato, quarto e sala, com cozinha e banheiro fora da casa. O prazer dela era levar os sobrinhos ao casebre, à noite, e contar histórias à luz de velas. Depois de nos assustar, ela nos mandava de volta à casa grande: “Agora, vão embora, queridinhos. O anjo da guarda vai acompanhar vocês.” E, antes de fechar a porta, fazia “buuu” outra vez.

Pois bem. Aproximando-se esses dias das bruxas, de todos os santos e dos finados, martirizo-me por não cumprir a orientação de São Cipriano para se vingar desses fantasmas. Ora, quando tia Rosa morreu, tive reação esquisita, como se numa corda bamba entre o bem e o mal: senti um alívio profundo, logo seguido, no entanto, de um medo crescente: “E se ela se transformar em assombração, vindo puxar minha perna à noite?”

Segundo São Cipriano, é preciso, para se vingar de gente má e de bruxas, fazer xixi no túmulo delas. Mas tem que ser no Dia das Bruxas. Ora, fazer xixi é fácil. O problema é que, até hoje, não sei onde minha defunta tia foi enterrada. Bom dia.

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