Os 80 mil quilômetros

AutomóvelJá percebi que, dentro em breve, perderei a paciência e desencadearei uma crise familiar. Ora, recuso-me a ser filho de filhos, tutelado por netos, como se eles me olhassem e me vissem como um ancião desvalido, um caduco que já perdeu o tempo de validade. Pois caducar, caducidade é isso mesmo: perder tempo de validade. E eu me considero, ainda, muito lúcido, com energia sobrando para que essa molecada queira se meter em minha vida, ora bolas.

O drama continua sendo o meu automóvel, meu utilíssimo Corça 2002. Não há, em minha família, quem não me apoquente para trocar de automóvel, como se fosse apenas mais um desses objetos descartáveis propostos pela ideologia do mercado. Tudo é descartável, especialmente pessoas. Há a compulsão, a loucura para se trocar tudo, de ano em ano, talvez de semestre em semestre. Troca-se de carros, de celulares, de televisores, de geladeiras, de automóveis e, também, de marido e de mulher. Acabou-se o senso de valor e de utilidade, pois esta, a utilidade, é uma das questões mais angustiantes da Filosofia quando se busca o entendimento da felicidade.

Não adianta argumentar que uso o meu carro apenas para transporte pessoal, para ir e vir, para deslocar-me. Não sou comerciante de automóveis e nem tenho estacionamento para ficar considerando lucros e perdas, custos e benefícios. Meu carrinho está ótimo, cumprindo a sua função de ser veículo de minhas andanças. Organizei minha vida, desde meados da década de 1980, para viver em recolhimento, distanciado, participando apenas daquilo que me importa dentro de uma escala de valores. Trabalho em minha casa, criei um mundo particular que me enriquece, minhas idas são as apenas necessárias, despertando-me sempre a vontade do retorno, das vindas.

Por quê tenho que trocar de carro, ora, bolas, carambolas? De ano em ano, levo-o para uma revisão e o bichinho continua ótimo, incluindo pneus que foram trocados de uma única feita e ainda estão seguros, alinhados, balanceados. Por quê trocar – insisto, agora nervosamente, com netos e filhos – se estou apenas chegando aos 80 mil quilômetros de rodagem? E é isso o que os exaspera: “Pai, você rodou apenas 80 mil quilômetros em oito anos!” Ou: “Vô, isso não dá mil quilômetros por ano!” E outro: “Nem 100 quilômetros por mês.” E daí, e daí ? – é o que me pergunto estarrecido. Querem que eu vá para onde, se o meu canto de ficar é meu mundo plenificado?

Ora, confesso que estou cada vez mais próximo da misantropia. Afinal de contas, convenhamos, está cada vez mais difícil encontrar alguém para conversar, para trocar idéias, para refletir com lucidez. Eu não entendo de novelas, de BBB, de “Fazenda”, não entendo de carrões, de shoppings, desses teres e haveres desenfreados. Logo, estou cada vez mais acompanhado de meus velhos amigos e mestres que se reúnem em minha biblioteca, nas prateleiras de meus CDs, nas páginas de arte, tendo como companheiro e interlocutor o homem que cuida de meu jardim. Num raio de 600 ms., encontro o necessário para sobreviver: supermercado, farmácia, pronto-socorro, borracheiro, padaria, posto de combustível, pessoas especializadas em múltiplos serviços, como encanadores, eletricistas, a minha cozinheira que se tornou governanta da casa, motoboys, restaurantes para um jantarzinho a dois, a academia de ginástica, o escambal.

Não vou trocar de carro apenas por estar na moda fazer troca de tudo, incluindo o essencial. O mercado entende de mercadoria. Desgraçadamente, as pessoas aceitaram ser descartadas e trocadas como objetos de venda e compra. Meu carro me levou e leva para onde preciso ir ou para lugares que me satisfazem. Forcei a memória e consegui me lembrar para onde meu carrinho me transportou nesses 80 mil quilômetros rodados: São Lourenço, Campos de Jordão, Monte Verde, Ubatuba, Guarujá, São Paulo, Campinas, Mombuca, São Pedro, São Carlos, outros espaços de que não me lembro,pedaços de mundo onde sempre houve algo que me enriqueceu. E isso significa, na verdade, que rodei muito por aí, mas rodei pouco por aqui. Ora, nada mais razoável, nada mais honesto, nada mais verdadeiro: se tento construir o meu mundo pessoal no lugar onde moro, pouco tenho a fazer fora dele. Aprendi a sair quando há o que acrescentar. Sair para subtrair, é tolice. E me sinto subtraído, roubado, agredido, desrespeitado toda vez que saio às ruas, atropelado por uma turba que não percebe estar se transformando em manada ou numa horda de bárbaros. É isso.

Que a moçada desista: meu carro é para ser usado, não para ser exibido. E bom dia.

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