Os ainda vivos poetas mortos.

Poetas mortosNão creio haja quem, tendo-o visto, não se emocionasse com “Sociedade dos poetas mortos”, o filme. São emoções que permanecem. A arte tem o poder de se tornar eterna, atemporal. Até o novo ser humano dos tempos globalizados – essa incógnita – é tocado em coração e sentimentos que tentam ser trocados por máquinas.

Assisti-o novamente, acho que pela décima vez. É um filme que permanece. Cena por cena, a impressão é a de que se vai fazendo um bordado de sentimentos, um desfile de fantasmas que continuam vivos, dos mortos que nos governam. O homem, por mais tente, não consegue sacudir toda a poeira de suas sandálias. O passado e a história parecem partículas que penetram a carne, que não se soltam. O que de mais verdadeiro existe em cada um de nós senão o passado, aquilo que se já viveu, que permaneceu, que se conheceu? O presente, como o bordado, vai-se fazendo. A vida, pois, é um ir-se, esse vir-a-ser constante, contínuo. Quando acontece, deixou de ser.

Retomo o descompasso movido pela preciosidade que escapa daquele filme, remexendo emoções. A memória, quando cutucada, movimenta-se. Então, sem saber a razão – ou, talvez, sabendo mais do que imagino – apareceu-me, de volta e vivo, Paul Verlaine. Devia estar escondido entre os poetas mortos, esses que têm mais vida do que os que se dizem vivos. Lá, pois, estava Verlaine em minhas recordações, as belas salas do Colégio Dom Bosco, o apaixonante culto à literatura, às artes. Como isso tudo pôde ter desaparecido de nossas escolas? Crianças ainda, vivíamos a literatura, a música, todas as artes com minúcias e delícias de gente grande. Paul Verlaine ressurge desse baú de recordações feitas de vida.

O “Dom Bosco” tinha a sua Academia de Letras, adolescentes fazendo parte dela. Eu ocupava a cadeiera com seus nome e, aos 15 anos, lá estávamos, nós, em embates literários, em saraus, em enriquecimento cultural, levados pelos professores. Ninguém se esquecerá do grande embate declamatório travado entre dois gigantes da cultura piracicabana à época, Benedicto de Andrade e Padre Eduardo Affonso, já falecidos. Um deles, declamando “O Navio Negreiro”; outro, “Vozes d´África”, longuíssimos poemas de Castro Alves. Era o mundo transformado em poesia, a vida deixando de ser contada em prosa para ser narrada em versos. Na grande disputa daqueles titãs, ficávamos, os moços, banhados por baldes de cultura e arte que nos entravam pelos poros.

. Como – ainda adolescentes – podíamos falar em Verlaine, em Rimbaud, em Shakespeare, em Homero? E por que não se fala mais? Ouvi a eloquência dolorosa desses silêncios ainda numa dessas noites de férias escolares, assistindo ao filme “Tróia”, ao lado de netos e alguns de seus amigos, todos adolescentes. eles não sabiam do que se tratava, ninguém ainda lhes falara de Homero, da Ilíada, de berços e sementes da civilização ocidental. Que suicídio coletivo tentamos cometer, sonegando fontes de vida aos jovens?

Mas, Verlaine, onde se escondera meu Verlaine? De repente, nessa sociedade dos poetas mortos, ele reapareceu, como se escapando das funduras da alma. Nas minhas estantes, nenhum livro dele, nem um poema sequer. No entanto, um canto palpitava-me na memória, Verlaine falando de um Outono, tocando-me em minha então exuberante Primavera de adolescente. Frases soltas ficaram, Verlaine falando de uma folha morta, de ventos em atropelos, rimando “soluços graves” com “violinos suaves”. E ele, poeta, sendo levado pelo vento, “de porta em porta, como folha morta”.

Não sei porque Verlaine reapareceu. Talvez, trazido por aquela folha morta, aquele Outono distante, versos que – parecendo esquecidos – repousavam numa ferida ainda aberta: “Sufocado em ânsia,/ ai!, quando à distância/ soa a hora, /meu peito magoado / relembra o passado./ E chora.”

O mundo é, ainda, uma sociedade imortal de poetas mortos. Felizmente. Bom dia.

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