Os sem teto de Belém

A narrativa da humanização dos deuses tem sido, em todos os tempos, uma história de maravilhas, peripécias, milagres, assombros. E, em todas as religiões e civilizações, há tesouros de sabedoria e lições que acabaram por compor toda uma estrutura social humana, impregnando os povos de todos os quadrantes. Uma das sabedorias e outra das principais lições estão no testemunho da humildade. Os pequeninos serão recompensados e punidos, os soberbos. Com isso, criou-se uma ética que norteia, ainda hoje, toda a história humana.

A família de Nazaré – Maria e José, depois Jesus – não fugiu a esse caleidoscópio de humanismo despojado e, portanto, sábio. No Magnificat – um dos mais belos cânticos do universo religioso – a virgenzinha diz que, nela, “o Senhor fez maravilhas”. E que os poderosos seriam destronados, enquanto a humilde pastora haveria de reinar sobre a alma humana universal.

Não se trata, apenas, de uma visão judaico-cristã de mundo. Pois, em civilizações e culturas anteriores – entre medos, persas, celtas, egípcios – há a percepção de uma dimensão superior ao simples humano, na qual se contempla aquilo que se não entende, numa consciência universal da existência do sagrado não decifrado. O advento do capitalismo – e Max Weber, mais do que ninguém, captou essa tragédia – conseguiu desencantar e dessacralizar o mundo, priorizando os bens materiais aos espirituais ou, talvez ao mesmo tempo, subordinando estes a aqueles.

Na primeira década do século 21 – quando toda a experiência humana anterior deveria ter-nos levado a uma elevação moral e espiritual – a trágica visão que se tem é de milhões de desterrados vagando pela Terra, homens e mulheres famintos, crianças depauperadas, famílias desintegradas, o desespero impedindo até mesmo uma réstia de luz de esperança. Multidões vagam pelas cidades e campos, sem teto e sem terra, sem comida e sem educação, sem saúde e sem segurança. Seria um flagelo de nossos tempos? Uma tragédia da modernidade que nunca chegou a ser pós-moderna?

Na verdade, não. Na história judaico-cristã – da virgenzinha judia que, fecundada pelo Espírito, se torna mãe de Deus – a clareza é meridiana: são os pobrezinhos, os mais humildes, aqueles de coração simples e alma limpa sobre os quais caem avisos de um outro estilo de vida, de uma outra concepção de mundo e, portanto, de amor e de convivência. O casal judeu, Maria e José, são os desterrados de seu tempo, os que vagaram pelos vazios da Terra, desassistidos, incompreendidos, injustiçados, à margem do poder imperial – o Império Romano apenas foi substituído por outros – e “à gauche” na estrutura social e econômica de seu tempo. Deles, nasceu o menino que dividiu a história em antes e depois dele. O ano de 2010 – e o de 2011, prestes a se iniciar – não faz referência aos grandes imperadores, aos conquistadores, guerreiros e reis. É o ano 2010 – e será o 2011 – Depois de Cristo. E isso diz tudo.

Talvez, hoje, o mínimo de sabedoria houvesse de exigir de pessoas minimamente lúcidas um esforço de reflexão para entender que tudo o que de mais poderoso aconteceu na e para a humanidade veio dos pobrezinhos: a queda da Bastilha, a revolução russa, a rebeldia dos injustiçados colonos dos Estados Unidos. E o nascimento de Jesus, numa manjedoura, filho dos sem-teto de Belém. Bom dia.

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