Outros jardins

Esse texto foi publicado em novembro de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

Acho que não entendi nada da vida. Mas sinto, também, que começo a entender alguma coisa. Será pena de não haver mais tempo? Pois a vida é apenas contemplação, talvez a única razão de existir o ser humano – para quem o mundo e a vida foram feitos. A ação atrapalha tudo, complica, conturba, desarmoniza. De minha parte, vou descobrindo que nada entendi da vida por tudo aquilo que fiz ou tentei fazer, a minha maneira de agir. 

Foi um equívoco até certo ponto cruel: eu quis construir um mundo à minha maneira, e não percebi que o mundo existia antes de mim, à sua própria maneira. 

Não há nada a modificar, não há nada a construir, não há nada a fazer – tudo o que existe é deixar que a vida simplesmente aconteça. Todas as vezes em que damos rótulos ao mundo e à vida, eles se complicam. Fizemos mundos bárbaros, mundos romanos, mundos cristãos, mundos ortodoxos, mundos islâmicos. Nenhum deles funciona. Mas há um mundo que funciona: o mundo onde a vida acontece naturalmente, onde a vida existe apesar ou além de qualquer invencionice.  

Descubro isso a partir da contemplação, de ver as coisas ao invés de inventá-las. Dois tufos de azaléias me humilharam em toda a minha arrogância intelectual, em meu racionalismo, em meu cientificismo cultural. Pois eu plantei azaléias, muitas delas. Havia a seca, então eu as fiquei regando, adubando-as, cuidando delas, zelando por elas. 

Ora, eu estava fazendo tudo o que os cientistas agrícolas me haviam ensinado, eu era o pai e o protetor daquele meu tufo de azaléias. 

Então, a chuva caiu, a chuva começou. As azaléias que eu plantei continuavam como estavam – mas em outro local, onde eu havia plantado ou semeado, começaram a surgir azaléias floridas, com flores vividas e alegres, rosas, vermelhas, brancas, como que nascidas do nada, ou ressuscitadas pela chuva. 

E eu nunca as havia visto antes – pois plantara as minhas próprias azaléias, egoisticamente, egocentricamente, racionalmente. Eu quis fazer o meu jardim, mas não percebi que havia jardim por onde eu não tinha passado. Pensei nos meus filhos, naqueles que estão comigo.  

Os meus filhos são na verdade como as azaléias que eu plantei racionalmente. São meus filhos e, por isso, deixo-me o direito de fazê-los à minha imagem. Aborreço-me quando eles não são aquilo que criei. São como as azaléias: as que eu plantei não estão ainda como eu queria. Mas as que existem sem mim ou apesar de mim são as mais belas. 

Acho que começo a entender a vida: tudo o que fazemos é conforme idealizamos. No entanto, a vida é maior do que o homem idealiza. Basta a contemplação. E por isso estou vivendo um complexo de culpa sem necessidade. Ensinaram-me que o homem é o rei do universo, o ser inteligente, a criatura idealizada por Deus. 

Será? A cada dia que passa mais me inquieto, pois cresce a sensação de que o ser humano é um defeito da natureza, um acidente, um desastre, uma exceção. E essa exceção deformada se arrogou o direito de toda a propriedade universal, quando nada mais seria do que a entropia que generalizou, um vírus que se multiplicou. Por que não? Só o homem contraria a vida. Isso é ser rei? Bom dia. 

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