Parenti serpenti

picture (21)A sorte do Congresso é esse feriado que amolece as pessoas. A paciência do povo dói-se com o que acontece e com o que se ouve. Tal qual se mostra o panorama – “burlesque” e “burletta” – poder-se-ia até rir. Ao saber de políticos preocupados com questões de família, passagens para esposa e filhos, “família é sagrada” – deles, é óbvio – lembrei-me do filme de Monicelli, “Parente é serpente”. Para alguns, simples comédia. E, no entanto, em humor negro, lá está o cáustico retrato da família universal.

Ora, pouco há de tão sagrado, na vida das pessoas, quanto a família. Políticos deveriam estar entre os primeiros a saber disso. E, então, preservar as deles com mais cautela. Pois família de gente notória corre o risco de se tornar notória também. Se assim é com as chamadas celebridades – atores, atrizes, atletas, modelos – o risco, com políticos, é ainda maior: a família do homem público torna-se pública também. O preço é alto. Ora, pouco se falou, mas foi desalentador saber que a filha de Fernando Henrique era assessora de um notório deputado nordestino, notório por comportamento duvidoso. E que, candidamente, ela recebia sem comparecer ao local do trabalho, pois “trabalhava em casa”. Papai sabia. Agora, Luciana pediu demissão, para não causar constrangimentos familiares.

Pois bem. Há falácias e raciocínios falsos que buscam obscurecer a reflexão do povo. Seria desonesto, por exemplo, camuflar até uma pequenina malandragem usando-se o argumento de “questão familiar”. Ora, é óbvio que existem e são sagradas as questões familiares, negando-se a qualquer pessoa o direito de invadir intimidades, de imiscuir-se em relações e dificuldades conjugais ou familiares. Isso, no entanto, se interrompe, quando o homem público leva seus familiares para o mundo da política, usando-a para beneficiá-los. Nas democracias subdesenvolvidas, é esse um dos nossos mais graves problemas: a odiosa questão do nepotismo, de empreguismo, de favorecimentos ilegítimos a parentes e amigos.

Há tempos, em ano eleitoral, um político de Piracicaba fez, com seus correligionários, a maior arruaça na zona do meretrício. Quebraram móveis, espancaram prostitutas, ameaçaram freqüentadores. De plantão no posto policial da Paulicéia, um policial honrado e destemido, o Cabo Trevizan, deu-lhes ordem de prisão, chamando a imprensa para testemunhar. O candidato usou de recursos seculares mas ainda atuais: primeiro, tentou subornar o cabo e a imprensa. Em seguida, ameaçou: iria remover o policial da cidade, faria o bloqueio comercial do jornal, com cortes e boicotes de publicidade. Nada conseguindo, o candidato fez um apelo à emoção: “Pensem em minha situação familiar, mulher e meus filhos.” Mas ele, ao depredar a zona, não pensara no respeito à família. E ao cargo.

E Fernando Collor? Quando a máscara caiu, posando como Catão, foi à televisão tentando desqualificar as denúncias do irmão, Pedro Collor: “São questões familiares.” Não eram. E se Paulo Maluf – diante das denúncias do Ministério Público quanto a contas suspeitas – defender-se alegando tratar-se de “assuntos familiares”? O mesmo ocorreria com Daniel Dantas. E, por esse raciocínio capenga, abusos do clã de ACM na Bahia e dos Sarney em todo o Nordeste – em vez de denunciados e divulgados – ficariam ocultos como um sagrado direito de família.

Quando Fernando Henrique, em viagem oficial, levava os netos, o PT berrava: “mordomia à família”. Quando Lula levou o filho a Nova York, o PSDB berra: “proteção à família.” Portanto, políticos sabem muito bem dos riscos e cuidados para não beneficiar, indevidamente, irmãos, filhos, tios, parentes e amigos. Questões familiares, estas ocorrem no âmbito da família, onde todos temos dificuldades. Mas se políticos beneficiam parentes com privilégios, com uso e abuso de dinheiro público – isso não são “questões familiares”. Pode ser corrupção.

“Parenti serpenti”. Político inteligente foge deles como o diabo da cruz. E, mais ainda, dos amigos do peito que, associando-se a falcatruas, acabam dando com a língua nos dentes. Por aqui, a casa, algum dia, irá cair. E não sobrará pedra sobre pedra. Bom dia.

Deixe uma resposta