Pedigree e vira-lata
Nada tenho contra cachorrinho vira-latas. Pelo contrário. Penso sejam os mais bonitinhos, sempre adoráveis, com olhar de desamparo, sofridos mas afáveis. Não há coração que resista ao ver, sob a chuva, um vira-lata aproximando-se, orelhas caídas, o rabinho abanando. E os olhos tristes.
Nelson Rodrigues – um dos nossos cronistas maiores – era apaixonado pelas coisas brasileiras, quase fanático. No futebol, ele enlouquecia a cada derrota. E, quando a seleção brasileira perdia, o cronista uivava: “complexo de vira-latas”. Para ele, o povo brasileiro vivia esse andar à-toa, o ir-se sem eira nem beira, uma nação indefinida, sem consciência de valores, de sua grandeza e potencialidades. “Complexo de vira-latas” seria como que um estado letárgico conveniente, que não compromete: “não sei de onde vim, não sei para onde vou.”
Recentemente, num sábado à tarde, a chuva, anunciando-se, parecia tornar ainda mais sereno o encontro de pessoas civilizadas. Magistrados, juristas, intelectuais, empresários, num ambiente onde passarinhos e violinos se harmonizavam. E o mais substancial pão, o mais saboroso vinho. Meu compromisso: ouvir, anotar, perguntar, colher informações de personalidades que acompanharam, em São Paulo, a grande saga do açúcar no século XX. A mim, fora solicitado ser um possível redator dessa história, de contá-la. E reencontrar vestígios dos sonhos que embalaram pioneiros – alguns já centenários – como Mário Dedini, Virgolino de Oliveira, Pedro Ometto, Pedro Morganti, citando apenas alguns.
Parecera-me fora de propósito o convite para estar lá. Então, entendi um dos motivos: naquelas conversas, nas reminiscências, Piracicaba era como o umbigo, o centro, o útero. Falava-se daqui e de nossa gente como o ponto de referência, o início da caminhada. Um desembargador tinha histórias a contar de Francisco Morato; outro queria saber dos Moraes Barros, herdeiros e descendentes. E de Luiz de Queiroz e da constelação da Esalq: dr.Brieger, Toledo Piza, Malavolta, Jaime Rocha de Almeida, Hugo Leme. E falavam de Mário Dedini como se do patriarca, da amizade fraterna e do sonho comum dele e de Virgolino de Oliveira. E perguntavam da Mausa, da Codistil, da Dedini, tecnologia e trabalho, a revolução do açúcar e do álcool que tem data e tem endereço.
O escriba entendeu uma das razões do convite para ser contador dessa história: a graça – dada pela vida – de ter acompanhado grande parte dela. Meu caderno de anotações enchia-se de rabiscos, de anotações, a ansiedade diante dos fios de meada saídos de cada lembrança daqueles homens e mulheres. Os violinos se harmonizaram não mais com pipilares de passarinhos, mas com o som da chuva caindo em árvores. Dei-me conta de estar diante de um conselho de anciãos, do banquete platônico. E entristeci.
E entristeci ao entender que, hoje, a vida política em Piracicaba causa o “complexo de vira-latas” de que se lamentava Nelson Rodrigues: a sensação de desamparo, de paisagem triste, visões amargas, dimensões medíocres. Piracicaba é infinitamente mais do que isso que se vê nas ruas: há uma história, um passado brilhante. Piracicaba tem pedigree. Ora, se política se vai transformando em questão de polícia, ela nada tem a ver com a gloriosa história de nossa terra e de nossa gente.
Piracicaba tem os seu numes protetores, os grandes veneráveis, espíritos da terra, os “pater patriae”. Neles, está a inspiração. Piracicabano não tem direito a “complexo de vira-lata”. Bom dia.