Pensar certo, pensar errado

picture (8)Sempre há, na vida, alguém a fazer-nos advertências. Ainda bem. No entanto, são como que perdas de tempo. Pois, na imensidão da vaidade humana, surdezes e cegueiras impedem-nos ver e ouvir. A mim, pelo menos, acontece-me corriqueiramente: ouço, não escuto; vejo, não enxergo. E – se ocorre de a vaidade murchar – é, na maioria das vezes, tarde demais, como ironia ou crueldades da vida: quando se adquire alguma experiência, esta já não serve para quase mais nada. Nem para ninguém.

São sem conto os anos ao longo dos quais um amigo me adverte: “Você pensa errado.” Nunca lhe dei ouvidos. Pois, tão regular é-lhe a rotina do cotidiano que, sem receio de exagerar, posso dizer que ele se repete em imitação ritualística do dia e da noite: meu amigo amanhece, entardece, ele anoitece. Mas sem eclipses, sejam de Sol ou de Lua.

É um homem que, dizendo-se matemático, se recusa a levar a sério filósofos e artistas. Isso me espanta. Pois, de minha parte, nunca encontrei diferenças fundamentais – a não ser de métodos e de caminhos – entre cientistas, filósofos e artistas. Lembro-me de, adolescente, ouvir, de um professor de matemática, que “duas retas se encontram no infinito”. Quase enlouqueci de prazer, imaginando as retas viajando uma ao lado da outra , saindo do nada sem chegar a lugar algum. Mas consegui, na fantasia, que elas fizessem curvas e parábolas, passeando em poeira de estrelas e em raios de luar. A matemática, acreditei, era poesia pura. Então, fiz uns versos. Meu amigo estragou o encanto: “Você pensa errado.”

Começo a dar-lhe razão. Pois – escrevinhando coisas – ao contar de algo ocorrido à tardezinha, esbarrei na imagem banal, comum: “Foi ao pôr-do-sol.”, escrevi. Eu pensara em crepúsculo, entardecer, ocaso, lusco-fusco, véspera, hora da ave-maria, do Ângelus. Saiu-me, porém, o prosaico “pôr-do-sol” . Foi quando me aconteceu acho que o tal “estalo de Vieira”, iluminação admirável: “Ora, se há um pôr-do-sol, a Terra está parada. Logo, quem gira é o Sol.”

Excitado, respiração ofegante, telefonei a meu amigo: “Não penso mais errado. Tive uma inspiração como a do profeta ali da esquina.” Ele não entendeu e quis, primeiro, saber a qual profeta eu me referia, se ao da garagem da esquerda, se à do salão da direita. Pois, onde moramos, há seitas, templos, cultos, profetas, curandeiros em concorrência permanente, digamos que a cada meio quarteirão. “Já sei: coisa de filósofo, de artista…” – zombou, como sempre, meu amigo. Pois, para ele, o ser racional não tem visões, inspirações, intuições. Perguntei: “Você acredita em pôr-do-sol?” Ouvi, ao telefone, o suspiro dele: “E como não acreditar em pôr-de-sol se posso vê-lo aqui de minha janela?” Era o que eu desejava ouvir: “Então, se o Sol se põe, é ele que gira, caminha e a Terra fica quietinha no seu lugar?”

Ele engasgou. Mas confirmou, a partir de seu pensamento certo: é a Terra que gira, mas é o Sol que se põe. Apelou para a poesia: “Será que você é assim tão burro e não percebe tratar-se de linguagem literária, o sol que se põe, que se levanta, que adormece?” Ora, fosse linguagem literária, deveríamos escrever que a “o meu lado da Terra se põe, adormecendo.” E não o Sol.

Meu amigo insistiu em seu raciocínio matemático, algo que se prova desde Copérnico e Galileu, sepultando o tempo ptoloméico: “A Terra gira, não é plana.” Não desisti: “Mas, então, por que há um pôr-do-sol?” Ele não quis mais conversar. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins)

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