Perdas
Quando aprendi que a vida são perdas, talvez tenha sido tarde. Pois já perdera muito, especialmente pessoas queridas, amadas. Chegou, porém, com a lição, a primeira descoberta de um início de sabedoria de viver: saber perder. Mesmo sabendo, porém, isso dói. Perdas são inevitáveis, mas dolorosas por levarem, consigo, pedaços de cada um de nós.
Por mais que se pense estar ganhando, acaba-se perdendo. Ganham-se amores, perdemo-los. Nascem os primeiros dentes, e as crianças os perdem. Perdemos cabelos, pais, irmãos, tios, filhos, amigos. Ganha-se a fé e a perdemos. Ganha-se a vida, e ela acaba. Talvez, seja verdade ser, a esperança, a última a morrer. Mas e quando não se sabe mais esperançar-se em quê? Ou para quê? Talvez, esteja aí o grande equívoco da vida humana: esperar, ter esperança em algo, em alguém, no desconhecido que nem sempre virá. A esperança pode dar um sentido de vida, para a vida. Mas mais sábio seria viver consciente de que a vida não precisa de sentido para ser vivida. Basta-se por si mesma. Viver já é a recompensa.
E viver são perdas. Que doem, por mais preparado esteja, o homem, para tê-las. A sensação de vazio, de ausência, de distância, do irreparável – isso parece tão concreto que é como se a alma tivesse corpo e, nela, a dor se incorporasse. Ficando para sempre. Para a medicina, a melancolia é doença. Nem sempre, porém. Pelo menos em mim, há momentos ou dias em que tudo se mistura: melancolia, saudade, nostalgia, como se fossem um único sentimento. Embora não sejam, há a presença das perdas e, paradoxalmente, a presença da ausência. O ausente continua presente. E é prova de que a perda é o único ganho verdadeiro.
Nostalgia, em especial, é a saudade de um lugar, o sentimento que mina os corações dos exilados. Mas é, também, de pessoas. E saudade é quase o mesmo. E são a saudade e a nostalgia que causam a melancolia, também forrada da presença da ausência. Logo, nunca sei, por mim, quando estou melancólico, nostálgico ou saudoso. Decidi admitir que – quando a ausência espinha o coração – tudo se confunde. E fica por algum tempo. E dói.
Os tolos confundem o saudoso com o saudosista. Este é relativo a um movimento filosófico, o saudosismo. O saudoso é o que tem saudade. E quem não a tem? Até as crianças têm saudade dos amiguinhos que se mudaram, dos brinquedos que tiveram antes. Não repetirei, aqui, o que já contei centenas de vezes a respeito de Thales de Andrade, quando indagado se seu grande livro, “Saudade”, seria entendido pelas crianças, pois era livro infantil. Thales apenas fez o teste com seus alunos de escola rural. Todos eles tinham saudade de alguma coisa e de alguém. Especialmente Pedrinho, o menininho negro, que, chorando, confessou: “Tenho saudade de minha mãe que morreu.” Era a grande perda que seria, também, a presença definitiva em sua vida. Estava, pois, confirmado o teste: criança também sente saudade.
Viver muito aumenta a carga e o peso das perdas. E – em tempos cada vez mais ásperos, rudes e cruéis – parece-me impossível não sofrer pelas perdas e pelas ausências. Pois elas se tornam ainda mais vivas. Cadê meus pais, meus parentes, irmãos, tios, a netinha, cadê? Cadê meus velhos amigos, companheiros de infância, de juventude, irmãos, camaradas? Cadê meus professores e orientadores, os sábios em que eu me apoiava espiritual e intelectualmente? Cadê a cordialidade, a fraternidade, a solidariedade, o respeito, o idealismo, a quase inocente credulidade daqueles anos sonhadores, cadê? Cadê o amor apaixonado e construtivo, o sonho de família, o lar coSmo lareira, homem e mulher como companheiros e cúmplices, não como sócios? Cadê a fé no divino e, também, no humano?
Tento entender que desapareça, com todas as perdas, um mundo em que se viveu e um tempo que nos marcou e ainda nos acompanha. Tento entender que os mundos acabam. Mas, na verdade, na verdade, resisto a aceitá-lo, mesmo com tantas e tamanhas perdas. Pois o mundo de minha geração, o meu mundo, ainda é tão belo e generoso, tão apaixonante e precioso que vale a pena continuar lutando por ele. Pois, se ele também foi perdido, a grande verdade é que ainda existe. Pois perdas permanecem presentes. É instintivo, pois, lutar pelo que foi belo e bom, digno e generoso. Se não pelos outros, por nós mesmos que o vivemos e que o guardamos nas lembranças, na saudade, na nostalgia, na melancolia. Bom dia.
Cecílio traz para este seu texto um sentir de uma concretude paradoxalmente sutil. Concreto, porque presente, sutil, porque nem sempre nos damos conta dessa presença dentro de nós. Trata-se da presença da ausência. O ausente presente e mais exigente de atenção do que quando presente no real. A perda permanece, amigo, você afirma. Essa permanência é invasiva e prepotente, diria mesmo, egoísta e implacável, no universo daqueles que conseguiram alimentar dentro de si, em sua caminhada, aquele componente incômodo, ao qual atribuo a origem evolutiva do humano, (Darwin que não me ouça) – a sensibilidade. Texto sensível este, Cecílio! Profundamente sensível.
Cecílio, podemos perder tudo, menos a vergonha na cara, fala sério.
Não podemos perder a pose… temos de ser firmes até o último suspiro!
Não podemos perder a esperança!…
(Sim, sim, as perdas são dolorosíssimas!…).
Belo texto, você é imbatível! Abraços da Ma