Pia batismal profanada

picture (18)Amo a Rua do Porto. É minha casa, meu berço, minha história. E, também, a de Piracicaba, até mesmo dos que não sabem disso. Disse-me, meu pai, meu umbigo ter sido enterrado na Rua do Porto, à margem do rio, diante do antigo Clube de Regatas, também criminosamente assassinado. Aprendi a nadar no rio, pulando do trampolim da Rua do Porto. Ajudei Nhô Lica, ao lado de meu pai, a catar pedras nas margens do rio, na Rua do Porto, como se elas realmente fossem esmeraldas. Minha família teve olaria na Rua do Porto e lá ainda estão as chaminés da cerâmica de meu tio Elias Cecílo, impávidas, simbólicas, históricas, ícones de uma história. Vi nascer a Arapuca do Hélio, em 1964, quando Paulo Pecorari começou a fazer o cuscuz que se tornou a representação daquele lugar histórico e boêmio, como a repetir o festival de cuscuz promovido por negras escravas e libertas no final do século XIX.

E o maior presente, a maior dádiva, a maior recompensa que tive na minha vida foi a de ter sido convidado para escrever as palavras que, no bronze, marcariam a revitalização do lugar, no governo de José Machado. Não foi inspiração, nem estro poético, mas apenas constatação que me levou a escrever: “Esta é a pia batismal de um povo.” E é. Para dar um mínimo de mim, fui, na reforma da rua, espalhar pedriscos no chão, carregar dois tijolinhos, a esperança de meu suor também regar aquela rua amada.

A Rua do Porto é nossa pia batismal, de uma história que se vai aproximando dos três séculos. E, sendo pia batismal, tem o sentido de sacramento. E, portanto, rua sagrada, lugar sagrado, povoado de fantasmas, de histórias, de acontecimentos, de poesia, de angústias, de dramas, de homicídios, de passionalidade. Naquela rua, estiveram cantando-a os nossos mais celebrados poetas. E pintaram-na em tela, os nossos mais celebrados pintores e, também, os anônimos que se deslumbram com seu encantamento e permitam lhes corra, no sangue, a vitalidade dessa história. É possível, ainda – para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir – sentir a presença de Joaquim Dutra pintando a curva do rio, em troca de um sanduíche de mortadela na vendinha dos Pecorari, onde está a Arapuca; e ouvir os versos frenéticos de Francisco Lagreca, cantando o rio, cantando o salto, cantando a névoa. Todos os nossos pintores e escritores, poetas e músicos passam pela Rua do Porto. E isso faz com que sua sacralidade prospera, expanda, aumente.

Ora, há sinais evidentes de a Rua do Porto começar a ser respeitada por proprietários de restaurantes e também por residentes. A Prefeitura hesita tolamente, as secretarias de turismo e de cultura ainda não foram despertadas para a dimensão extraordinária do lugar também como mais-valia, como valor agregado, como história e como turismo. A perda de tempo é lastimável, refletindo e revelando uma visão medíocre da história e da geografia. Mas, aos poucos, a Rua do Porto se impõe, como que movida por seus fantasmas, por sua história, pelo umbigo que é de todos nós, nossa pia batismal.

Mas está sendo vulgarmente profanada, quando a Prefeitura fecha os olhos para o escândalo de ambulantes que violam os mais comezinhos princípios de direito e de civilidade. São centenas de homens, mulheres, crianças – explorados por aproveitadores, especialmente de outras cidades que não Piracicaba – importunando freqüentadores de restaurantes, visitantes, turistas, piracicabanos que apenas querem estar no local, na contemplação ou no usufruto de tanta magia. Fiscalizar é ato de coragem para o homem e para as instituições públicas, sempre temerosas de perder votos. Mas o Ministério Público poderia, serenamente e cumprindo o seu dever, constatar o escândalo de irregularidades e de ilegalidades que transformam a Rua do Porto em casa de mãe Joana, em terra de ninguém, na violação de direitos. São crianças sendo exploradas para a venda de produtos contrabandeados; são vendedores de produtos ilegais ou produzidos irregularmente que zombam de tudo e de todos, de um lugar e das autoridades.

Não há mais, pelo que parece, o que esperar do Executivo e do Legislativo de Piracicaba, que parecem viciados em coar mosquitos e engolir elefantes. Portanto, o Ministério Público tem que ser chamado às falas. Onde estão os Promotores de Justiça que não enxergam o que está acontecendo na Rua do Porto, chamando às falas as autoridades? A pia batismal de Piracicaba não pode ser profanada por leniência, covardia, omissão ou conivência das autoridades responsáveis. E bom dia.

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