Pluma ao vento

Acho que, desde quando me conheceu, o Lino Vitti, meu amigo e poeta, sempre me disse não ter, eu, ainda encontrado o meu lugar no mundo. Desisti de contestá-lo, estou prestes a lhe dar razão. Pois não encontrei mesmo, não procuro mais e faço de conta.

Sabem, aquele conflito do ser ou não ser? Pois é esse e ainda mais: ter ou não ter, estar ou não estar, haver ou não haver. Quando se pensa ser, não se é. Quando se tem, perde-se. Quando se está, não basta. Quando há, não há. E, daí, a descoberta do contrário: acreditava-se não ter, tinha-se; o que não era é; onde não havia, há; não estando, estava-se. Cansa. E pode enlouquecer.

Tenho pensado muito em cansaço, em enlouquecimento. Por isso, esforço-me para não levar a vida a sério, muito menos o mundo. Ou rio ou enlouqueço. Vejam, o Lula e o PT. Votei no Lula para protestar contra o Fernando Henrique. Agora, o Lula é Fernando Henrique e o Fernando Henrique passou a ser Lula. O PSDB virou PT, o PT é PSDB aprimorado. Assim, se eu levasse a sério as coisas, terei que votar no Fernando Henrique outra vez para impedir que o Lula seja cada vez mais Fernando Henrique e, ao mesmo tempo, votar no Fernando Henrique porque ele se tornou Lula. Desisti.

Sem certezas fundamentais, um homem fica sem certeza alguma ou passa a tê-las todas, as certezas. Acreditar em tudo ou acreditar em nada dá quase na mesma. Crê-se ora nisso, ora, naquilo. O verdadeiro de uns não o é para outros. De repente, não sei mais se rio, se choro, qual personagem do “Rigoletto”. O duque, zombando: “la donna é mobile, qual piuma al vento.” Ou o bufão de Verdi, na dor dilacerada:“Ah! la maledizione.” Maldição para uns, alegria de outros, será?

“Qual piuma al vento”, tenho dia de muitas certezas. E dias sem certeza alguma. Dias em que o ser humano me parece a mais bela obra da criação. Em outros, a mais detestável. Que se há de fazer? Dia desses, convidaram-me a participar de novos protestos contra corrupção, contra violência, contra ódios. Não reagi, a vontade de recolher-me ainda mais. “La maledizione”, gemi.

Pois ouço as mesmas coisas há mais de 50 anos. Os mesmos problemas. As mesmas falácias. Fico apalermado, ora tomado de indignação, ora sem indignação alguma. Terêncio ainda me importuna: “nada do que é humano me é estranho.” Por que, então, estranhar tanto a miséria humana? Se estranhar, serei tolo; se não estranhar, serei alienado.

Venho tentando ser jardineiro. Que mais fascinante modelo humano do que o fazedor de jardins? Se se perdeu um paraíso, há que se tentar resgatá-lo. E não importa se são humanas as ervas daninhas: é preciso cortá-las. Joio e trigo não combinam; erva ruim mata a flor; uma fruta podre estraga as outras. Jardineiro que se preze usa podão. Sociedade sem podões não constrói jardins.

O ser humano é mais bicho do que anjo. Basta ler os códigos penais, tábuas de leis civis e religiosas. Neles, está toda a miséria de que é capaz o ser humano: incesto, seqüestro, roubo, morte, crueldade, infidelidade, traições, adultérios, farisaísmos, lenocínio, pedofilia, necrofilia, zoofilia. Até Deus, inventor dessa encrenca toda, tentou consertar e baixou ordens severas: “Não matarás, não roubarás, não pecarás…” E mandou para o inferno quem desobedecer.

Hoje, o inferno é para quem acreditou em tábuas de leis. E os céus, para infratores. Sem jardineiros e sem podões, a civilização perdeu. Feito “Rigoletto”, sinto-me bufão, com antigas crenças tolas. Autoridades, por exemplo. Para que existem, mesmo? E, tentando tranqüilizar o Lino, cuido do meu jardim e faço de conta estar aqui. Ainda. “Qual piuma al vento”. Bom dia.

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