A poesia é feminina

O texto foi publicado no dia 23 de setembro de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão”, lançado em 2014

A Marisa (NA: Marisa Bueloni), musa dos “Recados” (NA: página irreverente de O Diário), lançará seu livro de poesias. Tive o privilégio de ler um de seus cadernos. Ela consegue, ao mesmo tempo, transbordar-se de um lirismo profundo e de uma participação aguda. No mesmo tempo que capta um raio de sol, capta, também, a angústia do homem que passa sob ele. Desde que conheci a Marisa – e ela era meninota ainda – fiquei com um xodó fraterno por ela. Mas uma dúvida sempre guardei: gosto da Marisa por causa das suas poesias ou gosto das poesias porque são escritas pela Marisa? Desvendei tudo lendo o caderno escondido da Marisa. Se sua poesia existe é porque ela existe primeiro, como poesia viva. Assim como a Maria Cecília (NA: Maria Cecília Bonachella).

São mulheres que vivem o dia-a-dia como esposas amantíssimas e mães devotadas e que, no entanto, saem do cotidiano para olhar o mundo de frente. O poeta consegue ver a árvore e a floresta. Quando se trata de mulher, a sensibilidade é ainda mais aguçada, com o dom que têm as mulheres de enxergar o invisível, de prever o imprevisível. Perdão, me engano: com o dom que têm, as mulheres, de enxergar as coisas como elas são, nos detalhes que nos passam desapercebidos, mas tão enriquecedores de todas as coisas.

Admiro os poetas porque nunca consegui ser um deles. Enciúmo-me por causa disso, pois há poemas que gostaria de ter escrito, há estrofes que desejaria fossem minhas. Todas as vezes em que me chamaram de poeta foi para me xingarem. E os que o disseram – a forma delicada para não chamar o outro de louco – nunca souberam que uma das frustrações da minha vida foi a de não ter nascido poeta. Poeta e vagabundo. Vivendo a vida como ela é e não aquela que eu quis viver. Ver e ouvir estrelas, nem que fosse para andar falando sozinho pelas ruas. Aliás, falo sozinho, comigo mesmo. Muitas vezes já me chamei a atenção para um passarinho perdido no meio dos homens.

Quis, na verdade, ser poeta. Mas desisti quando me roubaram a Lua. Ela era tão bonita e misteriosa, tão inacessível e provocadora de ilusões – e o homem foi conquistá-la. Quem é capaz de fazer poesia para um módulo lunar? Qual a sensação dos namorados sabendo que seus beijos estão sendo espiados por um astronauta ou por um satélite artificial? Tornou-se impossível tentar fazer poesia depois que “cibernetizaram” o mundo, depois que tiveram a suprema ousadia de inventar até as flores artificiais. Jamais conseguirei fazer um soneto a um bebê de proveta.

Desisti, pois. Não nasci para poeta. Quem nasceu foi a Marisa, que no meio de todas as coisas mais feias do mundo, consegue enxergar as mais belas, sem se esquecer das ruins. Foi o que senti lendo-lhe os originais.

O estro é de quem tem, não de quem quer. Quando o livro sair, todos terão onde beber muito da ternura que nos falta, do humanismo que nos está sendo roubado. Que venham à luz mais Marias Cecílias e Marisas, pois a poesia é a realidade esquecida que está deixando vazios e angústias. Que rimem sempre flor com amor, nunca com dor ou desamor. Bom dia.

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