Portas fechando-se

PortaFim de um tempo é como fim de missa. E cada qual reza a sua. As minhas, rezo-as especialmente em madrugadas, no silêncio delas. São horas aparentemente mortas em que, no entanto, tudo acontece às pessoas. Ou, pelo menos, para mim, em mim, comigo. Ora podem ser delírios e êxtases, ora martírios e libertações.

Houve tempo em que desejei entender o porquê disso. Agora, não mais. Sei que acontece e isso me basta. É minha missa e, portanto, o encontro com algum outro lado ou dimensão, conversas com Deus e deuses, com demônios, hora de ofertório e de consagração, também de exorcismo, certamente de penitências. E o deserto. Só pode entender quem o conhece. De início, a luz que cega, o calor que mata. Depois, a escuridão plena e imensidões estreladas. E, então, o frio que enregela e que também mata.

Sinto ser, talvez e apenas, um estado febril, nada mais do que isso. A febre, porém, causa delírios e desperta visões, libertação dolorosa onde o corpo parece não existir, pois é a alma que flui e vaga. O corpo se transforma em só coração, que bate e pulsa, que pulsa e bate, mas que se não vê. Não sei explicar: não se sente o corpo, mas ouve-se o pulsar dele. A alma voa como a de um moribundo ou paira como a de um bêbado. Como dizer dessas coisas?

Há alguns anos, para explicar-me, inventei ter um raio-de-luar e um pangaré, metáfora para dizer-me, a mim mesmo, o que não consigo entender. Precisei disso, pois, quando acontece, fico receoso, não sei mais se é medo, se simples e banal covardia. Ou medo e covardia existem juntos? Ora, voar no raio-de-luar, caminhar pela vida no lombo do pangaré é ir ao encontro do outro lado, estar diante da porta que se pode abrir, da cortina que se pode descerrar. E daí?

Entendo, hoje, que nada justifica explicar a origem das coisas, a não ser a simples conveniência de querer ou precisar fazê-lo. No entanto, nesse tempo que se acaba e nesse mundo que esboroa, a confusão é tal que a falta de certezas leva a uma quase caótica necessidade de tê-las. Antes, havia um espaço e um tempo sagrados. Dessacralizamo-los. Agora, há uma ausência quase absoluta de certeza cósmica e, então, o que era sagrado se tornou apenas supersticioso. Ou sacralidade e superstição são sinônimos? Em cada esquina, há propaganda de profetas anunciando tarô, búzios, pastores com pregações apocalípticas, cada qual, à sua maneira e espertamente, tentando ocupar espaços nos vazios existenciais. O humano está em busca de sua humanidade.

Uma das mais dramáticas ironias da vida humana, penso eu, está no simples e corriqueiro fato de o ser humano ser o único animal que sabe que irá, algum dia, morrer. Mas que vive como se isso nunca fosse acontecer. Reis, tiranos, políticos, governantes vivem como se fossem eternos, quando o que parece eterna e infinita são apenas a sua ganância e a ambição. O sábio vive o cotidiano, como bênção de cada momento, sabendo que o tempo vivido é o tempo acabado, o que ficou na memória para servir de lição ou de orientação, nada mais do que isso. E o tempo futuro simplesmente é uma expectativa. E, também, nada mais do que isso.

Deveríamos, os que estamos no Outono ou no Inverno da vida, ter a serenidade de compreender que um mundo acabou, o mundo de nossa própria história. E que outro está começando, simples história ainda a ser contada. Nada temos a ver com ele, esse novo mundo, feito de pressas, ambições, ansiedades, como aquelas que nos acompanharam em nosso tempo de construção. A viagem é outra, não mais pelo exterior, mas a viagem interior. É fim de um tempo e quase um fim de missa. Há que se vencer o medo de abrir a cortina, de atravessar a porta, com a coragem de olhar para o desconhecido. É, talvez, a grande aventura, a mais fascinante viagem. A surpresa, talvez, seja descobrir que, do outro lado, nada há que seja diferente do que já conhecemos. Bom dia.

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