Puxadores de carroças

Saindo do encrave onde fiquei meu canto de viver, a dor começa ao me aproximar do portão, à frente do qual passam homens e mulheres honestos mas machucados na alma. Há uma subida penosa para se andar a pé. Respira-se fundo para vencê-la. Mas operários enfrentam-na com bicicletas ou pisando firme com seus tênis rotos e chinelos esgarçados. Ao entardecer, a dor de ver aumenta: são pessoas judiadas, de feições sonambúlicas, que passam puxando carroças, carrocinhas, entulhadas de latas, vidros, jornais velhos, plásticos. Dou-me conta, então, da fragilidade de tudo, desse não ter saídas, de não vê-las ou enxergá-las.

Há doídas impressões que ficam grudadas na pele da alma. E, quando me aproximo daquele portão, é como se visse telas, gravuras, pinturas que, parecendo irreais, se tornam absurdamente verdadeiras. Uma delas é a “Parábola dos cegos”, de Brueghel, o holandês. São cegos guiando outros cegos. E, portanto, todos caindo. E outra, a gravura dolorosa de Gustave Doré, ilustrando o Purgatório de Dante, “as sombras, que duas vezes pareciam mortas, nos cavos olhos grande espanto…” Vejo cegos guiando cegos, sombras no purgatório – sinto-me entre eles. E não sei o que fazer.

Homens não podem ocupar o lugar que foram de cavalos, de mulas, de bois, de burros. Nem mulheres, principalmente as que envelheceram dando de seu corpo para gerar e alimentar vidas. Há uma regressão nisso, um retrocesso que grita seu testemunho de iniqüidade e de degradação. Mãos humanas – no terceiro milênio de uma civilização que se diz cristã – não devem e nem podem servir de instrumentos de tração animal. Homens e mulheres puxando carroças, transportando lixo, vivendo das sobras são a visão apocalíptica de um tempo de farsas, de vitrinas que promovem jogos de enganos: os que enganam, os que se deixam enganar, nós todos, cegos conduzindo cegos.

Há algo doente, profundamente doente, numa sociedade com tantos contrastes. O mundo não pode estar separado por um portão: do lado de dentro, jardins edênicos; de fora, a procissão dos mortos-vivos. Homens-bestas, mulheres-de-carga são confirmações da criatura humana desumanizada, despida de toda e qualquer dignidade. De um lado do portão, maravilhas do trabalho realizado com sofisticação; do lado de fora, o nível zero da tecnologia e – pior ainda – o grau mínimo de humanização. Se isso é possível, tudo o mais também é possível. Então, a farsa se faz tragédia.

Ao longo da história, o homem construiu sua dignidade a partir das transformações do trabalho. As conquistas tecnológicas aconteceram para humanizar o ser humano, tirando-o do nível das bestas. São anúncios e revelações de Prometeu, o deus filantropo que roubou o fogo a Zeus, entregando-o aos homens. Ele conseguiu transfigurar sua selvageria e ignorância em humanidade e em ciência.

Ésquilo revela a inquietação dos deuses ao saber do fogo em poder dos homens, o temor diante do que Prometeu fizera. Foi quando a esperança prometéica se manifestou , na revelação de sua certeza: com o fogo, os homens iriam aprender muitas artes. E a ciência. Foi esta, a ciência, a bênção de Prometeu aos homens. Aconteceu. Aprendemos a fazer imitações de paraísos, mas ainda permitimos tragédias e infernos.

Homens e mulheres puxando carroças clamam aos céus para Zeus tomar o fogo de volta. E o silêncio do Olimpo assusta. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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