Quando demora, já chegou

Sombras da idadeÉ pena não me recordar do título do livro, nem do nome do ator. Mas me ficou gravada a expressão que se ia repetindo ao longo das páginas, saída dos lábios simples e sofridos de um personagem real. Percebi, à época, não ter, o memorialista, tido a intenção de explorá-la. Mas a frase vai marcando, infiltrando-se e, sem o notar, o leitor acaba detendo-se para refletir. Pois o personagem – sábio na incultura, sábio com o aprendizado da vida e do  sofrimento – insiste em repetir-se: “DEUS, QUANDO DEMORA, JÁ ESTÁ CHEGANDO”.

Posso antever o sorriso cético  dos céticos. E penalizo-me deles, na angustia de constatar, a cada passo, que todos os vazios de Deus, nessa loucura, que a todos domina, de substituir o eterno pelo passageiro, o imperecível pelo perecível “DEUS, QUANDO DEMORA, JÁ ESTÁ CHEGANDO”. A frase foi penetrando-me devagarzinho porque nunca, como agora, mais me convenço de que o grande desafio que se abre aos homens, numa época apocalíptica e anunciadora do holocausto, é o de conseguir ouvir, no silêncio, a voz de Deus; de ver, em meio à multidão, a presença invisível de Deus; de sentir, quanto mais as dores se intensificam, as mãos balsâmicas e consoladoras de Deus.

Há alguns anos,  numa tarde garoenta , vi, em plena Praça da Sé, um homem inteiramente deformado. Suas pernas e braços eram apenas tocos que se lhe despencavam do tronco. Os pés estavam pendurados nos quadris, as mãos saíam dos ombros. Uma figura quase repelente em suas configurações físicas. E, no entanto, a multidão era atraída pela sonoridade de sua voz, poderosa e límpida que se ia destacando  em meio a todos os murmúrios. Sorridente, expressão pacifica, o homem dava testemunho de seus aleijões, desafiando o povo a ser feliz como ele se dizia ser. E cada desafio batia na alma como se fosse um soco, agressivo e irresponsável. Ele admitia não poder  andar ou comer com as próprias mãos. Mas que era feliz, porque – nada exigindo do mundo e a ele nada pedindo –  bastava-se a si mesmo, com a alegria que sentia intimamente. Não se queixava, não se lamuriava, não aceitava esmolas. Queria apenas ser ouvido. Um profeta da dor e da esperança, que conseguia fazer com que as pessoas de lá saíssem cabisbaixas, como que envergonhadas.

Confesso  ter pensado ainda mais  na frase quente e desafiadora “DEUS, QUANDO DEMORA, JÁ ESTÁ CHEGANDO”. Quem – mesmo não tendo coragem de confessá-lo – já não sentiu a presença de Deus em sua vida? Não a presença ostensiva, impactante –  que esta se impõe, em todos os minutos, diante de nossos olhos, na pessoa que passa, nas flores que despontam, na própria perplexidade humana que desfila. Mas a presença silenciosa, quase imperceptível que nos leva a caminhos inesperados e não planejados. A imensidão do egoísmo humano é a responsável por nossos equívocos. A partir do momento em que perdemos o verdadeiro sentido da vida , mergulhamos no pior de todos os vazios, o da perplexidade. Aquele não mais saber de onde viemos, para onde vamos, o sentido de estar participando da epopéia da Vida. Passamos, então, a querer que o mundo gire em nossa órbita, que sejamos, cada um, o fulcro e o centro do próprio universo. Mesquinhos e egoístas, buscamos que prevaleça a nossa vontade, com o exclusivismo que nos aparta do universal. Há um grande destino comum que se ajusta ao  de cada homem, que é o de reconstruir o jardim  destruído.

Quase todos continuamos desfiando o nosso rosário de insatisfações e de angústias, perguntando por Deus. Nem percebemos que, quando parece demorar-se, Ele já chegou, como fala a sofrida personagem de um livro sábio. Parece que Ele entra pelo coração. E só.  Bom dia.

1 comentário

  1. Carlos A. A. Campos em 31/05/2013 às 11:03

    Essa sua crônica me remete a uma antiga leitura de Boccaccio em duas fases de sua vida. Na juventude desvairada ele escreve que: Céus não existem/ Não existe inferno/ O prêmio da virtude/ É a própria virtude/ O castigo do vício/ O próprio vício”. Amadurecido e reflexivo escreve: “Outro Aretino fui/ aos céus ultrajei/ (…) Oh, se me creste gente impia/ Rasga meus versos/ Crê na enternidade”.
    Assim, agraciado, vou pegando carona nesse seu virtual e poético divã diário, sempre providencial para nós outros que também “já não somos os mesmos” como na poesia de Neruda.

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