Quando não se quer mais viver
Não há mais como negar estarmos na era da “depressão coletiva”. E não poderia ser outra, em meu entender, a realidade desde quando optamos – ou apenas nos recusamos a reagir – por um estilo de vida apenas materialista. O desencantamento do mundo – já o detectaram filósofos, pensadores – começou a acontecer com a brutalidade inicial do capitalismo. E se foi tornando como que uma filosofia pétrea a partir do Iluminismo tão decantado por alguns até hoje.
Ora, tenho, para mim, que esse estado coletivo de depressão é um dos mais significativos e alentadores sinais de que a alma do mundo não morreu. Se multidões vivem depressivamente, há que se procurar o porquê. E será inevitável concluir-se que se vai tornando impossível viver num mundo sem convivência, de existir numa era sem compartilhamentos e sem ideais mais nobres. O Mercado é o local de compra e venda. E se é o Mercado que impera no mundo ocidental, estamos, pois, em um espaço e um tempo em que tudo se compra e em que tudo se vende, incluindo pessoas. Logo, somos descartáveis. Quem aceitar essa condição é um bruto. Pessoas sensíveis deprimem-se. Logo, quanto mais deprimidos existirem, mais esperanças de reação haverá.
Se o mundo foi desencantado, nada impede que pessoas o reencantem ou que, apenas, consigam viver encantamentos que permanecem. Talvez – e vivo um momento em que recupero crenças que pensei perdidas – o grande desafio do ser humano, hoje, seja o de permitir-se a descoberta do encantamento. E, mais do que isso, encantar-se. Pois a realidade não é o que está fora de nós, muito menos a que nos é imposta por sistemas e regimes políticos e econômicos. São realidade provisórias, de um momento, de uma era. Que, portanto, passam. Se o homem for capaz de resistir ao tsunami de materializações, de promiscuidades, de vulgarização de todos os valores – então, ele sobreviverá. E retorno a quem mais, ultimamente, tenho recorrido, Dostoievsky: “O belo salvará o mundo.” E é no belo que mora a nossa realidade pessoal.
Uma das recompensas da árdua faina da escrevinhação se dá quando escrevinhador e leitor se comunicam. Cria-se – mesmo que se não conheçam pessoalmente – como que uma cumplicidade alentadora. E, especialmente nestes tempos de internet, a comunicação se faz com mais facilidade e – diria, eu – até mesmo com mais coragem. De uma certa forma, o escrevinhador desabafa; e o leitor, quando se identifica, desabafa também. Há algo comum, a comunicação, a comum-união (comunhão), princípio de comunidade.
Permito-me transcrever – obviamente preservando a autora – uma cartinha eletrônica de uma leitora. Ela está entre a multidão dos deprimidos, dos perplexos, dos que se vão desesperando por uma aparente e falsa ausência de rumos. Escreve ela, entre outras coisas, após ler um texto deste autor:
“Muitas vezes me sinto tão desencantada desse mundo atual que vivemos e, embora seja mais nova que vc (tenho 43 anos), tenha vivido menos e com menos riqueza de experiências, tenho saudades do que não vivi… Gostaria de ter nascido uns 40, 50 anos antes de quando nasci e já ter ido embora… Digo também (talvez até seja castigada por isso) que não quero viver muito, não, pois é muito doloroso viver no mundo como ele está..
Esse todo politicamente correto que existe hoje me irrita, me fede a uma hipocrisia absurda muitas vezes! A falta total e completa de valores, a superficialidade geral, o quão é importante ter e não mais ser. Trabalho com diversas pessoas e normalmente não consigo “bater um papo” gostoso, produtivo com praticamente ninguém, principalmente as mulheres. Ai, é de doer!”
Quantos homens e mulheres não estão sentindo e pensando semelhantemente? E os jovens, quais os grandes ideais que podem apaixoná-los, imantá-los? Shoppings e bens eletrônicos conseguem até mesmo produzir entusiasmos, mas não o encantamento que envolve a pessoa em fascínios e maravilhamentos. E esse mundo ainda encantado existe, mas submerso pela onda de superficialidades, de relativismos, de insignificâncias que empobrecem a alma humana.
Dou razão à leitora, quando ela diz ser muito difícil viver “no mundo como ele está”. Também acho. Acontece que vejo uma diferença fundamental em “estar no mundo” e “viver no mundo”. Eu apenas “estou no mundo como ele está”. Mas não vivo nele. Tentando construir o meu pequeno mundo pessoal, familiar, tenho a esperança de conseguir, a pouco e pouco, minar esse mundo maior. Tenho que coexistir com tudo, mas nada me obriga a conviver. Bom dia.