Que seja revéillon

RevéillonPalavras serão, sempre, esse mistério humano suspenso num fio de navalha, não se sabe se bênção ou maldição. Talvez, ambas. O sábio, por isso mesmo, fica em silêncio, o que me faz compreender que artistas – entre eles, jornalistas e escritores – jamais serão sábios. Ou, então, conseguirão um mínimo de sabedoria se se tornarem garimpeiros de seus próprios pensamentos, escolhendo um a um, com a palavra correta, exata. Mas como fazê-lo se a palavra tem duas vias, a do emissor e a do receptor?

Não me esqueço – por isso, sempre conto – de um relacionamento afetivo maravilhoso que se transformou em derrocada ao ter, como causa final e última gota, uma só palavra: talento. Eu, na tentativa de diálogo, falei que a mulher não tinha talento para tratar com adolescentes. Ela entendeu que, ao duvidar de seu talento para isso, eu a chamara de incompetente. Tentei mostrar o sentido do talento, como dom, como graça. Mas ela insistiu: eu a tratara como incompetente. Então, tudo ruiu, a gota d´água que fez transbordar o copo que chegara quase ao limite. Do que transbordou, nada mais se recupera. E assim foi.

Penso nessas coisas por uma certa preocupação que me começou a perseguir a partir de alguns amigos queridos, conhecidos, leitores. Devo estar usando palavras erradas, ao expor propósitos, desejos, expectativas. Percebi-o, pela primeira vez, quando, em Campinas, na redação do Correio Popular e conversando com diretores, lhes falei que começava a fazer as minhas cerimônias de adeus. Um dos jornalistas, amigo pessoal, empalideceu: ele entendera que, com alguma doença terminal, eu estava despedindo-me da vida. E as minhas cerimônias de adeus nada mais são, na verdade e conforme o meu desejo, do que despedidas a um estilo de vida, a preocupações que agora me parecem tolas, a angústias que não tem mais sentido e, em especial, a essa nova arquitetura moral que, sendo aceita por lideranças influentes, me repugna. Ora, escrever o quê, para quem, confiando em quê e em quem, no atual universo político brasileiro, incluindo o piracicabano? Não quero mais saber disso, intoxicado por mediocridades, por bandalhos travestidos de santos. É disso que me despeço, confessando e admitindo a derrota de minha geração que, no entanto, não foi vencida. Fomos derrotados em ações e propostas de dignidade, mas não fomos vencidos nos ideais de que uma sociedade digna e mais justa possa ser construída. Só que, agora, o tempo de minha geração – digo-o em especial por mim mesmo – não é mais o de fazer, mas o de pensar, de sugerir, de opinar, de ficar à beira da estrada e indicar o caminho para quem quiser ir a esta ou àquela direção. A escolha é do caminhante.

Reafirmo, sim, estar em processo de cerimônias de adeus, de adeuses. E me sinto feliz e cada vez mais aliviado com isso. Preciso de todo o meu tempo para pensar, refletir, contemplar, escrever, deixando o cotidiano para os noticiaristas de plantão. Não tenho mais notícias a dar, nem quero tê-las. A não ser que sejam uma verdadeira boa nova, essa que, para mim, está oculta no eterno retorno em que acredito.

Ficar à margem não significa ausentar-se, mas, talvez, tomar distância para melhor observar. Para assossegar amigos e leitores queridos – a quem me rendo por esse carinho – direi que, como uma folhinha de calendário, estou chegando a meu fim de ano pessoal, apenas isso. É um tempo que acaba. E acaba para reiniciar outro. Quando, pois, faço minhas cerimônias de adeus, peço que entendam: estou aguardando a chegada de meu revéillon. E revéillon é rêve, sonho. Sinto que são sonhos ainda mais belos e desafiadores. E realizáveis. Que assim seja. E bom dia.

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